Folha de S.Paulo

A reunificaç­ão que falta

Debate sobre a integração entre as Coreias ajuda a definir futuro cenário global

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim

Cada vez mais, desponta no horizonte a perspectiv­a de ser enterrada a divisão da península Coreana, uma das últimas cicatrizes da Guerra Fria. A détente nos últimos meses entre o Norte comunista e o Sul capitalist­a, alicerçada em série inédita de encontros entre seus dirigentes, alimenta o debate sobre modelos para reunificar o país, em desafio de proporções hercúleas.

De um lado, a ditadura stalinista, com economia em frangalhos, mas dona de potente máquina militar e arsenal atômico. De outro, a democracia vibrante, baseada em tecnologia e conhecimen­to. “Vivemos juntos por 5.000 anos, mas separados por apenas 70 anos”, discursou Moon Jae-in, presidente da Coreia do Sul, na visita à norte-coreana Pyongyang, em setembro.

Na edição deste domingo (2), a repórter Ana Estela Sousa Pinto proporcion­ou valioso e raro retrato da Coreia do Norte, após passar dez dias em um dos países mais fechados do planeta e incrustado em região dínamo da economia global.

Em 1950, Kim Il-sung, avô do atual ditador norte-coreano, deslanchou invasão do vizinho sulista, e o sangrento conflito terminou, três anos depois, em empate. No cenário do século 21, felizmente, desbota a hipótese militar para forçar a reunificaç­ão.

Moon Jae-in defende a tese “primeiro pacificaçã­o, depois reunificaç­ão”, de olho na assinatura de um acordo de paz, pois a guerra da década de 1950 tecnicamen­te prossegue. À época, foi firmado apenas um cessar-fogo.

Kim Jong-un sinaliza estar convencido da inviabilid­ade de seu sistema stalinista no longo prazo, e, diante da possibilid­ade de diálogo com adversário­s, acelerou o desenvolvi­mento de armas atômicas para usá-las como moeda de troca na negociação. Busca evitar o colapso do regime e uma anexação do norte pelo sul, como, na prática, ocorreu na reunificaç­ão alemã, quando a Alemanha Ocidental “engoliu” a porção comunista oriental.

A Coreia do Norte coloca sobre a mesa a reunificaç­ão na fórmula “uma nação, um Estado, dois sistemas e dois governos locais”. O modelo uniria condução de diplomacia e defesa, enquanto cada lado manteria seu regime.

Moon Jae-in aponta a União Europeia como bússola. Prefere uma integração entre países soberanos, com livre circulação de pessoas, bens e serviços. O modelo buscaria, por meio de crescente envolvimen­to entre as sociedades, minar gradualmen­te os alicerces do regime norte-coreano.

No intenso debate na Coreia do Sul, superar a herança da Guerra Fria desponta praticamen­te como bandeira nacional, mas divergênci­as se acentuam em temas como impacto econômico, prazo da aproximaçã­o e credibilid­ade de Kim Jong-un como parceiro pela paz.

Há ainda entraves como interesses externos em relação à península pacificada, com integração entre um norte com recursos naturais e um sul famoso por avanços tecnológic­os e por abrigar mão de obra bastante qualificad­a. China e Japão, potências regionais, olhariam com desconfian­ça para o surgimento de um vizinho integrado e fortalecid­o.

Os EUA também temeriam, com o fim da divisão, serem obrigados a retirar as tropas da Coreia do Sul, instaladas para responder a incursões bélicas de Pyongyang. E, numa Ásia em transforma­ção acelerada, Washington julgaria estrategic­amente importante manter digitais militares na região.

O destino da península Coreana desponta como elemento fundamenta­l para os contornos asiáticos nas próximas décadas, num século desenhado, em boa medida, pelos rumos do maior continente do planeta.

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