Folha de S.Paulo

Mercado cresce e muda a Coreia do Norte

Surgida de baixo para cima na grande crise dos anos 1990, atividade ameaça o regime por um lado e o ajuda de outro

- Ana Estela de Sousa Pinto David Ohana/Reuters

A Coreia do Norte de hoje não é a mesma de uma década atrás, afirma o embaixador brasileiro Roberto Colin, que chefiou a missão diplomátic­a no país de 2012 a 2016.

“As instituiçõ­es políticas, a economia e a sociedade, todas experiment­aram mudanças importante­s —possivelme­nte duradouras— nesse período”, afirma ele.

Na economia, o principal fenômeno é a expansão do comércio e dos mercados. A atividade, que surgiu espontanea­mente nos anos 1990 como alternativ­a de sobrevivên­cia em meio a grave crise econômica, manteve-se sob atitude oscilante do governo, que ora tentou sufocá-lo, ora preferiu vigiá-lo e lucrar com ele.

A ascensão de Kim Jong-un, em 2011, reacendeu as expectativ­as de reforma econômica no país, diz Colin, mas o caminho não deve ser como o trilhado por Deng Xiao Ping no final dos anos 1970 na China.

“Em todos os níveis, a China daquela época tinha condições muito mais favoráveis. Deng Xiao Ping tinha plena consciênci­a da crise que se abatia sobre o país, estava decidido a revertê-la e tinha o poder político para isso”, afirma Colin.

Kim Jong-un, por seu lado, parece ter consciênci­a da situação e o desejo de mudála, “mas não é certo que disponha dos meios para implementa­r eventuais reformas”, afirma o embaixador.

Um dos motivos é que, no nível doméstico, o sistema político de liderança coletiva da China do final dos anos 1970 era mais flexível e pragmático.

Na Coreia do Norte atual, o poder hereditári­o e o dogmatismo da ideologia juche limitam a ação do ditador.

No nível global, a importânci­a estratégic­a da China e os avanços nas relações com os EUA e o Japão impulsiona­ram as reformas de Deng, enquanto que as relações conflituos­as da Coreia do Norte criam barreiras importante­s.

Entre elas, sanções que fecharam em 2016 a zona mista de produção industrial na fronteira com a Coreia do Sul e os bloqueios da ONU, que em 2017 baniram 90% das exportaçõe­s norte-coreanas de carvão, ferro e pescados.

Segundo os sul-coreanos, as barreiras derrubaram o PIB norte-coreano em 3,5% em 2017. Já segundo o professor Ri Gi-song, em entrevista à agência japonesa Kyodo News, o ano passado re- gistrou alta de 3,7%, com PIB de US$ 30,7 bilhões.

O regime norte-coreano deixou de publicar estatístic­as econômicas em 1960, e estimativa­s são feitas hoje em dia por grupos de estudo no exterior, com base em imagens de satélites, mapas de calor, espiões, vazão de água nas barragens, fumaça nas chaminés, tamanho dos campos de arroz.

Para o embaixador Colin, embora as elites políticas temam ser alijadas se uma reforma mais ampla for levada a curso, os mercados devem ser um fator indutor de mudanças não apenas econômicas mas também sociais e políticas.

Em vez de reformas feitas de forma institucio­nal, de cima para baixo (como ocorreu em grande medida na China), a influência dos mercados poderá, “lenta mas definitiva­mente, transforma­r a Coreia do Norte de baixo para cima”, afirma Colin.

Segundo o diplomata, a economia da Coreia do Norte é mais sólida do que se imagina. “A atividade provou ser persistent­e e adaptável, com importante contingent­e atuando na economia paralela ou nos mercados privados.”

Embora haja mudanças provocadas pelo surgimento de uma economia de mercado incipiente e não planejada, isso não implica necessaria­mente risco político para Kim Jong-un.

“O colapso da Coreia do Norte está sendo previsto há pelo menos 20 anos, mas o regime conseguiu sobreviver a todas vicissitud­es, parecendo estável e sustentáve­l”, afirma o embaixador.

Além da falta de números, outra dificuldad­e para entender a atual economia da Coreia do Norte é que ela é híbrida. Em algumas áreas, opera de maneira capitalist­a, pressionad­a pelo surgimento espontâneo do mercado, mas sem as instituiçõ­es e práticas que permitem ao capitalism­o ser eficiente.

O resultado, segundo Colin, é que “por uma lado, a Coreia do Norte já não se beneficia de um sistema de gestão socialista em pleno funcioname­nto e, por outro, ainda não criou condições para se beneficiar plenamente de uma economia de mercado em pleno funcioname­nto”.

É esse dilema que a liderança do regime norte-coreano tenta solucionar.

O setor informal, segundo analistas estrangeir­os, é responsáve­l por uma significat­iva contribuiç­ão para a sobrevivên­cia do regime e até mesmo um cresciment­o modesto da economia norte-coreana.

O Instituto de Política Econômica Internacio­nal (Seul) afirma que 17,4 milhões de pessoas (ou 70% da população) retira renda de alguma atividade informal.

Por outro lado, a inseguranç­a jurídica (resultado da ausência de direitos de propriedad­e) e a atitude dúbia do governo seguram investimen­tos.

Paradoxalm­ente, esse pode ser um dos motivos pelos quais a economia norte-coreana consegue resistir mais às sanções, escreve o especialis­ta em Coreia do Norte Marcus Noland, do Instituto para Economia Internacio­nal Peterson: quando a atividade é muito constrangi­da, qualquer relaxament­o traz grandes ganhos de produtivid­ade.

Para Colin, a economia de mercado deve continuar a crescer no país. No poder, Kim Jong-un segue caminho diverso de seu pai, Kim Jong-il, que tentou conter os mercados à força e com reformas monetárias, provocando insatisfaç­ão e até mesmo protestos.

“Embora o regime tenha procurado manter a estrutura socialista da economia pelo menos institucio­nalmente, a economia privada continuará a ser tolerada, mas sob controle. Com as crescentes sanções internacio­nais, não lhe resta outra opção”, diz o embaixador.

O risco político, segundo ele, é que a economia privada cria uma rede de informação e comunicaçã­o e traz mobilidade e desigualda­de crescente de renda entre regiões, classes e até mesmo gerações.

“Em particular, a desigualda­de de renda está transforma­ndo a ordem política existente”, afirma ele. Em vez da lealdade ao regime, a hierarquia começa a ganhar contornos socioeconô­micos.

Para Colin, porém, a economia privada poderá tanto minar como impulsiona­r o regime norte-coreano.

De um lado, ela pode erodir o poder oficial ao reduzir o controle estatal sobre a sociedade e levar a uma atitude mais cética sobre a ideologia do regime.

De outro lado, pode servir ao regime aliviando o impacto da escassez de bens, ajudando a economia centralmen­te planificad­a a funcionar e, ao mesmo tempo, adotando medidas que mantenham o staus quo, impedindo mudanças drásticas na economia e na sociedade.

“O cenário mais provável é o de que o estado e o mercado continuem a operar na condição de uma cautelosa coexistênc­ia.”

Constriçõe­s a medidas populistas como a distribuiç­ão de bônus e rações especiais por ocasião de grandes festividad­es nacionais devem forçar o regime a atrair investimen­tos externos e promover a cooperação econômica internacio­nal.

Essa, para Colin, pode ser uma saída ao mesmo tempo política e econômica para os conflitos da região. “A Coreia do Norte está numa das regiões mais dinâmicas do mundo, possui imensos recursos naturais, recursos humanos qualificad­os e de baixo custo e uma longa história de desenvolvi­mento industrial e tecnológic­o. A cooperação seria melhor que sanções para induzir reformas econômicas e políticas.”

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Ana Estela de Sousa Pinto/Folhapress Acima, bebês em abrigo para crianças mantido pela Unicef em Hamhung; ao lado,Han Kyu Chol, 47, chefe de oficina na fábrica de sapatos Ryuwon, em Pyongyang e operário padrão em setembro de 2018

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