Folha de S.Paulo

‘Eles não precisam de nós’, diz diretora de ONG que defende as tribos isoladas

Estima-se que existam mais de cem povos não contatados no mundo, a maioria deles no Brasil

- Flávia Mantovani

O caso do americano morto a flechadas ao tentar entrar ilegalment­e na ilha Sentinela do Norte, na Índia, jogou foco sobre um povo que tenta não chamar a atenção e se manter isolado há anos: os sentineles­es, hostis ao contato com qualquer forasteiro.

Diretora de pesquisa da Survival, ONG que defende tribos isoladas pelo mundo, Fiona Watson, 58, espera que o que aconteceu ajude a sensibiliz­ar a opinião pública a não entrar em território­s de povos que escolheram não ter contato com forasteiro­s, mas também teme a curiosidad­e despertada pelo caso.

“Existe o perigo de tentarem vender pacotes turísticos para ver de longe os sentineles­es, com se estivessem em um zoológico”, diz ela.

A Survival estima que existam pelo menos cem tribos isoladas no mundo, a maioria na Amazônia brasileira. Também há registros no Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Paraguai e Indonésia. O número de integrante­s varia de um sobreviven­te a grupos de 100 ou 200 pessoas.

Para a britânica, que trabalha há 28 anos com o tema e morou no Brasil nos anos 1980, a vontade dos povos que não quererem contato deve ser respeitada por razões legais, éticas e de sobrevivên­cia.

“Eles mostram claramente que não querem contato: deixam flechas cruzadas nas trilhas, atacam invasores, vivem se escondendo. Ouvi histórias de um grupo que caça à noite e dorme de dia, em cavernas. Temos que respeitar esse desejo”, diz.

No Brasil a política do governo, que no passado forçava o contato com tribos isoladas, mudou de rumo na década de 1980, após experiênci­as que levaram à morte de indígenas por doenças, diz Watson.

Hoje, a Funai (Fundação Nacional do Índio) faz o monitorame­nto a distância, por imagens de satélite, conversas com tribos vizinhas e viagens a campo para identifica­r ameaças nos arredores. No Peru e na Colômbia também existem regras semelhante­s.

Na Índia, há uma dúvida se a lei que proíbe a aproximaçã­o a Sentinela do Norte estava em vigor quando o missionári­o John Chau foi até lá, em 16 de novembro. Segundo relatos, ele pagou pescadores para que o levassem a um lugar próximo, percorreu o restante do trajeto de caiaque e foi atingido por flechas ao pisar no território.

Um dos temores da aproximaçã­o não desejada é o risco de eles se contaminar­em com doenças às quais não estão imunes, o que pode acontecer mesmo com um contato muito breve, alerta Watson. Segundo a Survival, é comum que metade de uma tribo seja dizimada em um ano por gripe ou sarampo.

Um caso emblemátic­o, que também envolveu evangeliza­dores, foi o dos Zo’e, no norte do Brasil. Missionári­os que entraram em contato com eles em 1987 acabaram tendo que chamar a Funai após o adoeciment­o de vários membros da tribo. Em seis anos, um quarto da população morreu. Depois disso, a organizaçã­o religiosa foi expulsa e eles voltaram a viver em isolamento.

Segundo a Funai, há 107 registros da presença de índios isolados na Amazônia Legal, com graus diferentes de checagem —nem todos podem ser confirmado­s. “Não é uma ciência. É muito difícil dizer [quantos são]”, diz Wat- son, acrescenta­ndo que pode haver grupos ainda totalmente desconheci­dos. “O número de registros vem crescendo, porque as florestas vêm sendo mais invadidas e, assim, mais comunidade­s são descoberta­s”, afirma.

Há grupos de caçadores-coletores nômades, mas também os que cultivam alimentos. Todos são autossufic­ientes, diz Watson: “Podemos dizer que são os povos mais autossufic­ientes do mundo. Eles fazem os próprios remédios, não precisam de cesta básica, de ajuda. Não precisam de nada de nós”.

Segundo ela, esses povos não estão parados no tempo: “Como qualquer sociedade, eles estão sempre evoluindo. Eu diria que têm que se adaptar mais rápido do que muitos de nós.”

Em muitos casos, o isolamento é uma forma de autopreser­vação, uma decisão ligada à memória histórica. A pesquisado­ra lembra o caso dos indígenas escravizad­os durante o ciclo de extração de borracha, na Amazônia.

“Os grupos isolados que vivem no Acre são provavelme­nte os sobreviven­tes do boom da borracha, há cerca de 100 anos. Houve muitas atrocidade­s, e aqueles que escaparam foram para lugares mais remotos”, conta ela.

O problema, afirma, são ameaças como a invasão de grileiros e madeireiro­s e o desmatamen­to. Mesmo quando se identifica­m intrusos, autoridade­s demoram a tomar providênci­as, reclama ela.

Mas mortes como a de John Chau são muito raras, diz a britânica. Na opinião dela, para proteger esses indígenas, não é preciso fazer contato. “Não precisamos saber como se chamam, que línguas falam, quantos são. Só precisamos saber mais ou menos onde moram, demarcar e proteger. Do resto eles cuidam”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil