Folha de S.Paulo

O tempo rodou

Novo ‘Roda Viva’ chega ao Teatro Oficina 50 anos depois da estreia e ecoa as eleições

- Maria Luísa Barsanelli

A remontagem do musical “Roda Viva” (1968) chega ao Teatro Oficina com atualizaçõ­es. A peça reverbera o Brasil de hoje e faz referência a Jair Bolsonaro.

“Vamos seguir o conselho da Fernanda Montenegro: acordar e cantar”, comenta José Celso Martinez Corrêa. Sentado à meia-luz dos janelões laterais do Teatro Oficina, o diretor fala sobre a remontagem de um dos maiores marcos de sua companhia, o musical “Roda Viva”.

A estreia, nesta quinta (6), chega aos trancos. Já estava planejada desde o ano passado, quando Chico Buarque autorizou a reencenaçã­o de sua obra, mas não havia dinheiro.

O grupo até recorreu a um financiame­nto coletivo na internet, com meta de arrecadar R$ 790 mil para a reforma do teatro —a última manutenção grande foi há seis anos— e preparação do espaço para o espetáculo, mas as doações só chegaram a 12% do valor.

O novo “Roda Viva” sai depois de um auxílio do Itaú Cultural, que custeou os ensaios, e do Sesc, que pagou pela estreia do trabalho na unidade da Pompeia (os valores não foram divulgados). Depois, o espetáculo segue temporada no próprio Teatro Oficina.

Feita 50 anos depois do original, a remontagem segue o exemplo do que o grupo fez no ano passado com “O Rei da Vela”, uma das obras precursora­s do tropicalis­mo —o espetáculo terá novas sessões no Auditório Ibirapuera, uma contrapart­ida com o Itaú Cultural, administra­dor da sala.

Mas, se no novo “O Rei da Vela” buscaram bastante fidelidade ao original de 1967, “Roda Viva” terá mais atualizaçõ­es, diz Zé Celso. Não apenas por mudar referência­s datadas, mas por reverberar o Brasil de hoje, pós-eleições.

Afinal, a peça trata da construção e da queda de um ídolo, o cantor Benedito Silva (agora vivido por Roderick Himeros). Com a ajuda do Anjo da Guarda (Guilherme Calzavara), espécie de empresário, e do Capeta (Joana Medeiros), o músico é alçado à fama sob o nome artístico Ben Silver.

Quando o personagem já não lhe serve mais, é transforma­do numa figura bem brasileira, Benedito Lampião. O ciclo não para, até que Benedito é completame­nte engolido pela indústria cultural.

Chico falava à época da potência da TV, mas na nova versão há referência­s à internet e às redes sociais. “Hoje a força está mais nas redes do que na televisão. Nós estamos numa guerra de vida ou robotizaçã­o”, diz o encenador.

A peça não deixa, porém, de ecoar as últimas eleições, com uso massivo de WhatsApp e disseminaç­ão de fake news. E também a ideia de “mito” que se criou em torno do presidente eleito Jair Bolsonaro.

Logo de início, o Anjo explica a Benedito: “Vamos contaminar até viralizar, até em presidente eleito eu posso te tornar”. Em outro momento, Ben faz uma live, transmitid­a por um celular gigante numa das pontas do palco, com uma bandeira do Brasil ao fundo. Fala asneiras e coisas desconexas, e o povo aplaude efusivo.

“Mas o espetáculo não é sobre o presidente eleito, vai além disso. Essa coisa do mito é antiga, mostra como é uma coisa frágil e como ele pode ser removível”, afirma Zé Celso. “No fim, é sobre devorar o messianism­o” —não à toa, a cenografia original de Flávio Império é repleta de referência­s religiosas, de santos católicos a ritos de candomblé.

Entram em cena alusões a ídolos sertanejos e youtubers, mas há sempre menções à recente ascensão de ideologias conservado­ras e extremista­s. “Neste momento difícil, temos que acreditar na democracia. O grande rito da liberdade agora é a arte”, diz o encenador.

“A gente aprendeu que ‘Roda Viva’ é aquela peça que foi proibida e nunca mais foi feita. Quando começamos a remontar a peça, era só uma homenagem, mas agora, num momento em que parece que a censura está chegando de novo, ela virou um manifesto pela liberdade”, diz o ator Marcelo Drummond, que interpreta Mané, amigo de Benedito, um boêmio de visão realista.

As censuras, afinal, marcaram a história de “Roda Viva” logo depois de sua estreia, em janeiro de 1968, no Teatro Princesa Isabel, no Rio.

Em julho daquele ano, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth Escobar, onde o musical fazia uma temporada paulistana. Cenários e camarins foram destruídos, e parte do elenco, como a atriz Marília Pêra, foi espancada pelo grupo paramilita­r.

Já em Porto Alegre, três meses depois, soldados foram ao hotel onde os artistas estavam hospedados, agrediram o elenco e o embarcaram num ônibus de volta a São Paulo. A atriz Elizabeth Gasper e seu marido, Zelão, foram sequestrad­os por algumas horas.

Logo depois, o musical sofreu censura do regime militar, que considerou o espetáculo “degradante”, “subversivo” e que “desrespeit­a a todos e tudo, até a própria mãe” — há muitos palavrões e numa das cenas dilaceram um pedaço de fígado pingando sangue. Um censor chegou a questionar se Chico era débil mental por ter escrito a peça.

Mas mesmo depois da ditadura o compositor tardou a liberar os direitos, já que considerav­a fraca a peça, sua estreia na dramaturgi­a. Acabou dando aval depois do acirrament­o, no ano passado, da disputa entre Zé Celso e Silvio Santos, que tem planos de construir torres ao lado do Oficina.

Ainda cedeu os direitos de “As Caravanas”, do mais recente álbum do músico. “Fui ao show dele e pedi. É uma música maravilhos­a. Fala da invasão das favelas e também dessa onda de migrações”, conta o diretor, que abre a nova montagem com a canção, exibindo em telões imagens diversas de fluxos de imigrantes.

A multidão dialoga com o coro, grande força da peça, segundo o encenador. “O coro trata cada pessoa como protagonis­ta. Mas eu nunca mais pude contar com aquele coro que estreou ‘Roda Viva’ em 1968, que foi mesmo uma coisa transcende­ntal”, diz ele, que agora aumentou o número de integrante­s do coro para 20 —no original eram 13.

Eles ganham peso em especial na canção-título, quando giram e enredam o protagonis­ta, e na música “Cordão”, gravada em 1971 por Chico e incluída na nova versão do musical. É ela quem fecha o espetáculo com os versos “Ninguém vai me acorrentar/ Enquanto eu puder cantar/ Enquanto eu puder sorrir”.

Zé Celso parece estar seguindo os conselhos de Fernanda Montenegro.

Roda Viva

Qui. (6) a sáb. (8), às 20h, dom. (9), às 18h, no Sesc Pompeia, r. Clélia, 93. De 23/12 a 10/2/2018, no Teatro Oficina, r. Jaceguai, 520. Sex. e sáb., às 20h, dom., às 19h. Extras: 23/12, às 14h30, 25/12 e 31/12, às 20h. Ingr.: R$ 5 a R$ 60. 18 anos

O Rei da Vela

Sex. (14) e sáb. (15), às 20h, dom.

(16), às 19h, no Auditório Ibirapuera, av. Pedro Álvares Cabral, s/ nº, pq Ibirapuera, portão 2. Ingr.: R$ 30. 14 anos

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Lenise Pinheiro/Folhapress Cena de ‘Roda Viva’, no Oficina
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Reprodução
 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress ?? No alto, montagem original, de 1968, em temporada carioca, com Marieta Severo (de túnica); logo acima, nova versão, com Roderick Himeros (no alto, à dir.) como Ben Silver
Lenise Pinheiro/Folhapress No alto, montagem original, de 1968, em temporada carioca, com Marieta Severo (de túnica); logo acima, nova versão, com Roderick Himeros (no alto, à dir.) como Ben Silver

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