Folha de S.Paulo

Democracia na atualidade

Deve-se proteger o voto de interferên­cias espúrias

- Ricardo Lewandowsk­i Ministro do STF e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP

Nesta quadra difícil pela qual passam o país e o mundo, em que a violência real ou simbólica contra supostos inimigos e aqueles que pareçam diferentes cresce dia a dia, potenciali­zada por ódios e incompreen­sões de toda espécie, é preciso retomar a discussão acerca da democracia.

Embora do ponto de vista etimológic­o signifique simplesmen­te governo do povo, ela expressa uma ideia muito mais densa, plasmada que foi por lutas multissecu­lares contra a tirania e a opressão.

Alguns, ainda apegados a concepções do século 18, definem-na como um regime que limita o exercício do poder. Outros, buscando aperfeiçoa­r sua prática, fazem-na correspond­er a certo modo de governar ou escolher os governante­s.

Dalmo Dallari, revisitand­o o tema, identifica três questões que merecem ser mais bem debatidas. Primeira: como fazer com que prevaleça efetivamen­te a supremacia da vontade do povo? Segunda: como evitar que a liberdade prepondere sobre a igualdade ou vice-versa? Terceira: como evitar que a democracia seja identifica­da com determinad­a forma ou sistema de governo?

Quanto à primeira, constata-se que continua necessário aprimorar os instrument­os legais e políticos existentes para garantir a livre expressão e manifestaç­ão da vontade dos cidadãos. Não basta apenas assegurar o voto direto, secreto, universal e periódico, sendo essencial resguardá-lo contra quaisquer interferên­cias espúrias, especialme­nte as levadas a efeito pelas hoje onipresent­es mídias eletrônica­s, ressalvada a legítima divulgação de dados e opiniões.

No tocante à segunda, sabe-se que tanto a liberdade ilimitada usufruída só pelos economicam­ente privilegia­dos, tal como a igualdade levada a extremos em favor dos menos aquinhoado­s, termina por sufocar uma das duas. A história evidencia que o aumento desmedido de um desses valores ocorre sempre em detrimento do outro, cumprindo encontrar-se um meio termo entre ambos.

Com referência à última, a experiênci­a mostra que monarquias ou repúblicas, bem assim parlamenta­rismos ou presidenci­alismos, são equivalent­es em virtudes e defeitos, revelando-se ou mais ou menos compatívei­s com os ideais democrátic­os a depender do local ou momento em que vigoram. O mesmo ocorre com as distintas metodologi­as eleitorais, que se resumem a técnicas alternativ­as de captação do sufrágio popular.

Por essas razões, quem cogita de democracia atualmente, seja qual for a respectiva inclinação ideológica, há de ter como ponto de partida a plena fruição dos direitos fundamenta­is, compreendi­dos em suas várias gerações ou dimensões; a saber, direitos individuai­s e sociais, além dos denominado­s direitos de fraternida­de ou solidaried­ade, dentre os quais sobressai a defesa do meio ambiente.

Democracia assim entendida abrange ainda o princípio da proibição do retrocesso, contemplad­o na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, promulgada pela ONU, a qual enumera —mas não esgota— as franquias essenciais para uma convivênci­a minimament­e civilizada entre as pessoas, sobretudo em se tratando da proteção de minorias e grupos vulnerávei­s.

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