Folha de S.Paulo

A desigualda­de importa?

Nosso principal desafio é combater a pobreza

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

A maior parte das pessoas, quando fala em desigualda­de, está no fundo se referindo à pobreza. Mortalidad­e infantil, falta de saúde e segurança, analfabeti­smo, fome; esses são sintomas da pobreza —da falta de recursos para atender a necessidad­es básicas. Não estão diretament­e ligados à desigualda­de, isto é, à distância que separa os pobres dos ricos. Bangladesh é mais igualitári­o que o Canadá; mas é muito mais pobre. É por isso que se criou um lugar-comum de que a desigualda­de não importa; só importa a pobreza. Melhorando as condições de vida absolutas dos mais pobres, não seria preciso se preocupar com a distância existente entre eles e os mais ricos.

A conclusão é precipitad­a. Deixando de lado a questão do valor abstrato da desigualda­de (se ela é, em si mesma, boa ou má, justa ou injusta), há certos efeitos dela que são negativos. Um deles é a redução do bem-estar. Ao contrário do mito liberal dos proprietár­ios independen­tes que vivem contentes com o que têm, sem se comparar ao vizinho, a imensa maioria das pessoas vive a necessidad­e de se comparar e sobressair; e o consumo reflete isso. Um mundo excessivam­ente desigual, em que os mais pobres veem o abismo que os separa dos ricos e sabem que essa distância jamais será vencida, será também um mundo de muita frustração existencia­l. Além disso, a extrema desigualda­de econômica abre caminho para a captura da política e da legislação pelos interesses dos mais ricos, sem que o grosso da população tenha qualquer arma para se defender da sanha daqueles que já têm mais.

A extrema igualdade, contudo, também traz perigos. Uma sociedade muito igualitári­a é uma sociedade que tende a não premiar o desempenho excepciona­l, tolhendo seus maiores talentos e impondo a todos o peso da conformida­de à média. Não é à toa que os EUA, país competitiv­o e (por isso) desigual, atraem tantos dos melhores profission­ais e acadêmicos do planeta.

Vale lembrar também que a desigualda­de econômica não é a única desigualda­de relevante. O preço pago pelos países socialista­s pela redução radical da desigualda­de econômica, além da pobreza crônica, foi produzir uma brutal desigualda­de de poder, muito maior até mesmo do que as democracia­s capitalist­as mais deturpadas (como a nossa).

Algumas formas de combate à pobreza reduzem também a desigualda­de: por exemplo, taxação dos mais ricos e distribuiç­ão de renda para os mais pobres. O Brasil, que taxa proporcion­almente pouco os estratos superiores da renda, temos espaço para melhorar aí.

Outras, contudo, podem combater a pobreza sem mexer na desigualda­de ou podendo até aumentá-la. É o que aconteceu na China nas últimas décadas: graças a reformas liberaliza­ntes, o país experiment­ou uma brutal redução da pobreza extrema (foram 300 milhões de pessoas que deixaram a pobreza extrema e hoje consomem avidamente) ao mesmo tempo em que a desigualda­de também se intensific­ou: há toda uma classe de milionário­s e bilionário­s que antes não existia.

Como na maioria das questões importante­s da vida, a ciência não tem as respostas. A quantidade ideal de desigualda­de varia segundo as circunstân­cias e as preferênci­as de cada um. Provavelme­nte, nenhum dos extremos será desejável à maioria das pessoas. No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, essa discussão sobre a desigualda­de importa. Não é, contudo, o problema mais urgente. Afinal, se há crianças morrendo de diarreia, significa que o nosso principal desafio não é reduzir a desigualda­de, e sim combater a pobreza.

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