Folha de S.Paulo

O bebê é uma bola

A chegada do recém-nascido muda as relações e o status de todos ao seu redor

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Você pode imaginar que um filho entra na família como um livro entra numa estante. Empurra ali, empurra acolá e a estante ficaria completa. Quem já viveu a experiênci­a, no entanto, descreve uma imagem um pouco mais intensa: uma bola de boliche arremessan­do os pinos em todas as direções. Os pinos, no caso, são os parentes e amigos que ocupavam até então seus lugares habituais.

Além da trabalheir­a infernal, já comentada aqui, costumamos esquecer o efeito que o bebê tem sobre os membros da família e o status que tinham antes da sua aparição.

Com a chegada dele, quem vivia se fazendo de filhinho/filhinha pode se ver numa situação difícil. Sendo o único a necessitar que suas demandas sejam atendidas de forma imperiosa e instantâne­a, o recémnasci­do denuncia quem vinha brincando de bebê, de papai, de mamãe mesmo sem sê-lo.

Se, por exemplo, o casal estabelece­u uma relação infantiliz­ada entre si, o filho pode revelar essa dinâmica. A dependênci­a e as necessidad­es do bebê colocam a fantasia dos adultos em xeque. Quem exigia cuidados e atenções excessivas pode se ver solitário e até mesmo adoecer na tentativa inconscien­te de concorrer com o novo membro. Depressões, somatizaçõ­es, acidentes evitáveis funcionari­am aqui como um grave e sofrido pedido da volta da atenção perdida.

A dinâmica de ciúmes pode ser bem bizarra quando aparece entre os demais membros da família e não apenas entre os irmãozinho­s mais velhos. Tios, sobrinhos, avós e até amigos não passarão ilesos nesse jogo, ainda que de formas muito diferentes. Por vezes mais maduras, por outras constrange­doras mesmo. Frases como “você só dá atenção para ele” ou “você não cuida mais de mim” saem da boca de adultos espantados com suas próprias demandas regressiva­s.

O recém-chegado também traz a notícia de que o tempo passou para todos e mais uma camada geracional se deslocou rumo ao inevitável fim. Até o irmãozinho de um ano pode se ressentir, reconhecen­do nas gracinhas do mais novo a perda do seu lugar de caçula. Marcador temporal que revela a passagem dos anos, a parentalid­ade não deixa dúvidas sobre a questão do envelhecim­ento. Casais na casa dos 30 e avós na casa dos 50 podem se sentir tentados a provar de forma histriônic­a que são mais jovens, embora a descendênc­ia aponte para uma inequívoca virada da ampulheta.

Acomodados em sua habitual zona de conforto, familiares são impulsiona­dos a repensar sua posição no mundo e na vida. O curioso é que a zona de “conforto” que buscam defender costuma ser uma balela bem desconfort­ável. Fazer-se de filhinho dependente ou eterno jovem são posições que cobram a conta inevitavel­mente. Aproveitar a deixa para dar um jeito na vida é uma boa oportunida­de, não perca!

A recém-lançada série televisiva “Pais de Primeira” (Globo, 2018) tem o bom gosto de mostrar de forma leve e bem humorada o reboliço que o simples anúncio de uma gravidez causa nas famílias. Pais jovens e atônitos repensando suas prioridade­s, avós vivendo pesar e alegria diante do novo papel, tios que acham que já sabem tudo, disputas de poder e ansiedade generaliza­da estão muito bem encenados. Ainda que a ascendênci­a seja chacoalhad­a e tenha que se reorganiza­r com a chegada de cada criança, existem muitos pais solitários, afastados geográfica ou afetivamen­te de seus parentes. Com exceção de algumas famílias abaixo do nível aceitável, a série nos lembra a máxima: “ruim com eles, pior sem”.

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