O bebê é uma bola
A chegada do recém-nascido muda as relações e o status de todos ao seu redor
Você pode imaginar que um filho entra na família como um livro entra numa estante. Empurra ali, empurra acolá e a estante ficaria completa. Quem já viveu a experiência, no entanto, descreve uma imagem um pouco mais intensa: uma bola de boliche arremessando os pinos em todas as direções. Os pinos, no caso, são os parentes e amigos que ocupavam até então seus lugares habituais.
Além da trabalheira infernal, já comentada aqui, costumamos esquecer o efeito que o bebê tem sobre os membros da família e o status que tinham antes da sua aparição.
Com a chegada dele, quem vivia se fazendo de filhinho/filhinha pode se ver numa situação difícil. Sendo o único a necessitar que suas demandas sejam atendidas de forma imperiosa e instantânea, o recémnascido denuncia quem vinha brincando de bebê, de papai, de mamãe mesmo sem sê-lo.
Se, por exemplo, o casal estabeleceu uma relação infantilizada entre si, o filho pode revelar essa dinâmica. A dependência e as necessidades do bebê colocam a fantasia dos adultos em xeque. Quem exigia cuidados e atenções excessivas pode se ver solitário e até mesmo adoecer na tentativa inconsciente de concorrer com o novo membro. Depressões, somatizações, acidentes evitáveis funcionariam aqui como um grave e sofrido pedido da volta da atenção perdida.
A dinâmica de ciúmes pode ser bem bizarra quando aparece entre os demais membros da família e não apenas entre os irmãozinhos mais velhos. Tios, sobrinhos, avós e até amigos não passarão ilesos nesse jogo, ainda que de formas muito diferentes. Por vezes mais maduras, por outras constrangedoras mesmo. Frases como “você só dá atenção para ele” ou “você não cuida mais de mim” saem da boca de adultos espantados com suas próprias demandas regressivas.
O recém-chegado também traz a notícia de que o tempo passou para todos e mais uma camada geracional se deslocou rumo ao inevitável fim. Até o irmãozinho de um ano pode se ressentir, reconhecendo nas gracinhas do mais novo a perda do seu lugar de caçula. Marcador temporal que revela a passagem dos anos, a parentalidade não deixa dúvidas sobre a questão do envelhecimento. Casais na casa dos 30 e avós na casa dos 50 podem se sentir tentados a provar de forma histriônica que são mais jovens, embora a descendência aponte para uma inequívoca virada da ampulheta.
Acomodados em sua habitual zona de conforto, familiares são impulsionados a repensar sua posição no mundo e na vida. O curioso é que a zona de “conforto” que buscam defender costuma ser uma balela bem desconfortável. Fazer-se de filhinho dependente ou eterno jovem são posições que cobram a conta inevitavelmente. Aproveitar a deixa para dar um jeito na vida é uma boa oportunidade, não perca!
A recém-lançada série televisiva “Pais de Primeira” (Globo, 2018) tem o bom gosto de mostrar de forma leve e bem humorada o reboliço que o simples anúncio de uma gravidez causa nas famílias. Pais jovens e atônitos repensando suas prioridades, avós vivendo pesar e alegria diante do novo papel, tios que acham que já sabem tudo, disputas de poder e ansiedade generalizada estão muito bem encenados. Ainda que a ascendência seja chacoalhada e tenha que se reorganizar com a chegada de cada criança, existem muitos pais solitários, afastados geográfica ou afetivamente de seus parentes. Com exceção de algumas famílias abaixo do nível aceitável, a série nos lembra a máxima: “ruim com eles, pior sem”.