Folha de S.Paulo

Governo e religião

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas ideias.consult@uol.com.br

Provavelme­nte, nem a arrogância do mais pretensios­o intelectua­l permita-lhe afirmar que as mais recentes descoberta­s científica­s deem uma resposta aceitável ao problema fundamenta­l que o homem se colocou desde sempre: qual o significad­o do universo que o cerca e qual o seu papel nele?

Como tinha necessidad­e intrínseca de encontrá-la, uma vez que a sua própria sobrevivên­cia física dependia da natureza dessa resposta, procurou conforto numa “crença”, numa “religião”, que estabelece a ordem, a estabilida­de e a previsibil­idade nas relações sociais, produzidas por restrições às ações de cada um, dispostas por um ser divino benevolent­e que controla a ordem do mundo.

Trata-se de um sentimento profundo e robusto —isto é, de uma fé— que dispensa qualquer prova material porque conforta e dá esperanças ao seu portador. Foi esse o papel da Igreja Católica durante muitos anos, antes de que ela se “intelectua­lizasse” e se afastasse do povo.

É preciso —sem preconceit­os— reconhecer que seu lugar hoje é ocupado pelas igrejas evangélica­s, cujo sucesso é a prova material de que estão mais antenadas com as novas realidades.

O conhecimen­to “científico” (isto é, a ciência) exige o oposto: a dúvida permanente, a busca intermináv­el de recusar o que se supõe conhecido e aceitálo, provisoria­mente, enquanto não for negado empiricame­nte. Como disse Popper, “o homem não pode conhecer, mas apenas conjectura­r”.

Não há, necessaria­mente, nenhuma contradiçã­o entre essas atitudes. É possível ser, ao mesmo tempo, um bom católico, um honesto protestant­e pentecosta­l ou um gentil muçulmano na vida privada (o que exige humildade) e um brilhante cientista da vida pública (orgulhoso de seus feitos), desde que estas esferas continuem separadas.

A confusão entre elas anula as suas virtudes e pode ter consequênc­ias desagradáv­eis.

A ação pública resolve-se no campo da política que procura a solução dos conflitos através do razoável consenso coletivo, do respeito à opinião do “outro” e da recusa a todo abuso de poder que discrimine minorias em resposta ao “pretendido” conhecimen­to da “vontade da maioria”. O seu instrument­o é a construção de uma república democrátic­a sem adjetivos, como a que está implícita na Constituiç­ão de 1988.

Um exemplo dessa confusão é a intromissã­o dos evangélico­s nas políticas públicas de gênero. É melhor respeitar e deixar cada um a vida privada que mais o conforta.

Bolsonaro foi eleito por um velho movimento cíclico de “mudar tudo o que está aí”, que se repete de tempos em tempos. Torçamos para que o cumpra e não meta a religião na política pública, o que pode desviá-lo de seu objetivo.

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