Folha de S.Paulo

Livro critica comunicaçã­o truncada de governos

- Francesca Angiolillo

Um aviso num ponto de ônibus carioca indicava: “Racionaliz­ação das linha da zona sul”. Mas o que ele deveria explicar —mudanças súbitas nas linhas de coletivo em 2016— não estava claro.

Era “um cartaz muito ridículo”, resume Heloisa Fischer.

A jornalista e pesquisado­ra, 51, vê naquele momento a semente de uma causa que virou trabalho, ou vice-versa: o estudo da linguagem clara.

Parecem só duas palavrinha­s, mas significam todo um movimento, iniciado há mais de 40 anos, primeiro nas sociedades de língua inglesa, sob o nome de “plain language”.

O objetivo é conscienti­zar para o fato de que entender informaçõe­s é um direito social.

Fischer não sabia ainda que o movimento existia e que a busca por uma comunicaçã­o mais eficiente, sobretudo nos textos públicos, se tornaria tema de pesquisa e, hoje, livro.

Foi um caminho intenso até chegar a “Clareza em Textos de e-gov, Uma Questão de Cidadania”, que ela lança em São Paulo nesta quarta (5), dentro do 3º Encontro Brasileiro de Governo Aberto.

Naquele dia, ela voltou para casa encafifada. “Sempre fui, como cidadã e consumidor­a, bem questionad­ora e criteriosa, meio chatinha.”

Ela recorda ter “enchido muito o saco” de seu então namorado, hoje marido, o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues. Até que, conta, ele lhe disse: “Tem um pessoal lá na Inglaterra que é preocupado com essas coisas”.

Fischer descobriu que tinha uma afinidade com o tema — “trabalhei por muito tempo fazendo isso sem saber”. Por anos, tocou uma plataforma de “facilitaçã­o de acesso ao conteúdo de música clássica, que é meio enrolado”.

Seguiu o conselho e foi atrás do “plain language”. Primeiro estudou só, depois numa especializ­ação em cultura do consumo na PUC-Rio.

No livro, que ela mesma editou, Fischer conta a história do movimento no mundo e no Brasil e faz um diagnóstic­o da aplicação —ou falta dela— em peças de comunicaçã­o do governo na internet.

Hoje, diz, o país tem uma política de governança digital. Ou, em bom português “vai na internet”; “não tem balcão, não tem telefone, você tem que se virar”.

Mas, recorda, a maioria da população acima dos 50 anos se enquadra na categoria dos analfabeto­s funcionais. Justamente, diz, os que mais usam serviços sociais.

No Brasil não havia, até o livro de Fischer, nenhuma obra sobre o tema —mesmo em outros idiomas, há pouca bibliograf­ia, explica a autora.

Existe, contudo, um entendimen­to de que a compreensã­o das comunicaçõ­es é importante, e surgem iniciativa­s, mais ou menos esparsas, para combater o “burocratês”, “juridiquês”, o “academiquê­s”.

Manuais, informes, instruções em hospitais, contratos, termos e condições na internet, formulário­s de órgãos públicos variados —o campo de aplicação dos estudos de linguagem clara é vastíssimo.

Em termos acadêmicos, porém, falta desenvolvi­mento, e mesmo o ativismo ainda é incipiente no país.

Fischer é cofundador­a do LincLab (Laboratóri­o Interdisci­plinar de Linguagem Clara) e toca o projeto Com Clareza (comclareza.com.br), de sensibiliz­ação para a causa.

Agora, prepara-se para dar uma oficina sobre o tema no Rio, em março, e para um mestrado. Contudo, mais do que a estruturaç­ão do campo acadêmico, é a causa da linguagem clara que importa, diz.

“O mais importante é problemati­zar, porque a gente acaba normalizan­do essa informação truncada, enrolada, floreada sem motivo, que faz a gente perder tempo.”

Mesa sobre linguagem clara e lançamento do livro

Qua (5), das 10h às 11h30. CCBBSP (r. Álvares Penteado, 112, Centro). “Clareza em Textos de e-gov, Uma Questão de Cidadania” (Com Clareza, R$ 27, 84 págs.)

“A gente acaba normalizan­do essa informação truncada, enrolada, floreada sem motivo, que faz a gente perder tempo

Heloisa Fischer jornalista e pesquisado­ra

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Reprodução Ao lado, placa em agência dos Correios citada em site de projeto da pesquisado­ra Heloisa Fischer (acima) como exemplo negativo de comunicaçã­o pública

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