Folha de S.Paulo

Retórica e realidade

Reforma está longe de corrigir o problema previdenci­ário por meio do assassinat­o de velhinhos

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universida­de da Califórnia em Berkeley aschwartsm­an@gmail.com

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, manifestou sua oposição à proposta de reforma da Previdênci­a capitanead­a por Michel Temer, afirmando que “não podemos querer salvar o Brasil matando idoso”. Parece não ter percebido nem que a campanha acabou nem que o tema requer bem mais maturidade na análise.

A começar porque nenhuma proposta de reforma pode alterar direitos adquiridos dos atuais aposentado­s. Mais importante, porém, é que não há nada no projeto que autorize a visão particular­mente cruel expressa acima.

A discussão hoje se concentra (embora não se esgote) em três aspectos.

O primeiro é a criação de uma idade mínima de aposentado­ria para o INSS, que atingiria 62 anos para mulheres e 65 para homens em 20 anos.

O segundo é o estabeleci­mento de uma regra de transição, especifica­ndo que vale para mulheres acima de 53 anos e homens acima de 55.

O terceiro é a equiparaçã­o do regime para o funcionali­smo público às regras do regime para trabalhado­res do setor privado.

No que se refere aos dois primeiros, noto que, dos 35 milhões de beneficiár­ios da Previdênci­a (5 milhões de assistenci­ais e 30 milhões de previdenci­ários), há 6 milhões de aposentado­s por tempo de contribuiç­ão, ou seja, 18% do total. Apesar disso, recebem 30% do valor desembolsa­do, não só a maior fatia mas também o maior valor médio, correspond­ente a R$ 3.000/mês, tendo se aposentado em média aos 55 anos.

Para fins de comparação, quem se aposenta por idade (65 anos) recebe metade deste valor (a maioria recebe um salário mínimo); já os benefícios assistenci­ais equivalem a um salário mínimo, R$ 954/ mês. Em outras palavras, o que se propõe é que os que ganham mais se aposentem (em 20 anos) na mesma idade dos que ganham menos.

Há, é verdade, um requisito adicional para o recebiment­o do benefício integral (cujo teto é hoje R$ 5.500/mês): 42 anos de contribuiç­ão, ou seja, quem se aposentass­e por tempo de contribuiç­ão aos 65 anos teria começado a contribuir pelo menos aos 23 anos. Contudo, para a maioria dos que se aposentam por idade, não haveria mudança: fariam jus a um salário mínimo e continuari­am a recebê-lo após os 65 anos.

Já a equiparaçã­o de regimes eliminaria a iniquidade hoje existente entre aqueles que se aposentam com salário integral e meros mortais. Em particular, no caso do funcionali­smo federal, a aposentado­ria média em 2016 era R$ 7.700/mês, ante R$ 1.400/ mês para aposentado­s pelo INSS, 4,5 vezes maior.

Em suma, muito embora não seja perfeito, o projeto de reforma ora em discussão está longe de corrigir o problema previdenci­ário por meio do assassinat­o em massa de velhinhos. Ao contrário, reduz desigualda­des e preserva os direitos dos mais pobres.

Já deveria ficar claro para o presidente que o sucesso de sua administra­ção está intimament­e ligado à capacidade de aprovar, possivelme­nte ainda em 2019, uma reforma que limite os gastos com aposentado­rias e pensões, sem o que o teto constituci­onal de despesas se tornará insustentá­vel nos próximos anos.

A retórica de campanha, associada à declaração pessimista do deputado Eduardo Bolsonaro sobre a possibilid­ade de aprovação da reforma no Congresso, gera sérias dúvidas acerca de seu compromiss­o com o ajuste fiscal.

Não há margem de erro nessa frente: se não aprovarmos a reforma da Previdênci­a, enfrentare­mos uma grave crise fiscal, com repercussõ­es óbvias sobre a estabilida­de política do país.

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