Bateu no teto
Cria da festa Mamba Negra, banda Teto Preto lança disco eletrônico-hedonista
“A banda começou com um espírito de jam session. Nem ensaiávamos direito, entrávamos no palco para tocar e víamos ali na hora o que iria rolar. Lembro de uma vez, antes de um show, em que eu olhei para o Zop e perguntei: ‘Ih, e agora? O que vai ser hoje?’.”
A recordação é da produtora, diretora de vídeo e vocalista Laura Diaz, 29, que encarna a persona Carneosso, e o Zop é Pedro Zopelar, 31, produtor. A banda é a Teto Preto, que faz música eletrônica a partir de uma combinação de referências (Arrigo Barnabé, cinema novo, new wave, poetas malditos, música industrial).
Nos shows, essa mistura ganha ainda mais força com a performance de Loïc Koutana, francês de origem costamarfinense. Sávio de Queiroz (sintetizadores e produtor) e Bica (percussionista e trombonista) completam o quinteto.
Esse clima de improvisação que deu origem ao Teto Preto em 2014 foi inspirado pelo ambiente hedonista, feminista e inclusivo da Mamba Negra, uma das festas responsáveis por dar novo gás à cena eletrônica de São Paulo (ao lado de outras como ODD, Capslock, Metanol, Selvagem, Vampire Haus, Dûsk, Batekoo).
“No início, chegávamos na Mamba com os equipamentos, tocávamos as bases (eletrônicas) e a Laura improvisava ideias de vocal”, diz Zopelar.
“Mas, com o tempo, sentimos a vontade de mudar, de criar um repertório e arranjos para as músicas. Com o disco, veio a virada total.”
O disco é “Pedra Preta”, que acaba de ser lançado digitalmente. O show do Teto Preto, agora menos caótico mas nem por isso menos espontâneo, pode ser visto nesta quinta (6), no Mundo Pensante, e no dia 22, dentro da última edição de 2018 da Mamba Negra (neste dia o grupo vai lançar a versão em vinil do disco), ambos em São Paulo.
“Pedra Preta” tem oito faixas, incluindo o single “Bate Mais” (que aponta o dedo para a violência contra a mulher) e “Gasolina” (esta lançada com outro arranjo, em EP, em 2016, junto com uma versão de “Já Deu pra Sentir”, de Itamar Assumpção).
Entre o lançamento do EP e o do disco, o Teto Preto teve uma mudança: saiu o produtor L_cio (Laercio Schwantes), que está em uma bemsucedida carreira solo, e entrou Sávio de Queiroz.
“Foi mais ou menos nessa época que decidimos sair um pouco do techno e usar mais referências de noise, punk, new wave, dub, industrial, um som mais dark, estranho”, afirma Laura.
“Tem uma coisa meio punk, de pegar baterias eletrônicas e distorcer, usar como se fosse uma guitarra”, diz Zopelar. “Foi fundamental resgatar coisas antigas, como disco-music brasileira dos anos 1970. [A música] ‘Pedra Preta’ tem uma influência de Lincoln Olivetti, de Cesar Camargo Mariano, um jazz abrasileirado.”
Um dos objetivos do Teto Preto, segundo Laura, é fazer música “menos comportada”. Menos comportado como o rock e o pop.
“A Pabllo [Vittar] tem um papel importante em trazer uma nova perspectiva. A Linn [da Quebrada] está acabando com o estereótipo de que funk é música chula. Não, o funk é a música eletrônica brasileira”, afirma a vocalista.
Para Zopelar, o Teto Preto é uma banda incomum na forma de fazer música e na postura no palco. “Temos uma coisa meio ritualística, tanto no som quanto na performance do Loïc e da Laura.”
Nos shows, Laura muitas vezes se apresenta sem a parte de baixo. “É o meu corpo. O lugar que a mulher ocupa dentro do mundo da música é quase sempre de objetificação. Somos corpos e não temos o direito de mostrar os nossos corpos? Eu entrego a premissa, sou carne e osso. E a nudez joga essa premissa na cara.”
Em alguma fábrica abandonada no Brás ou na Barra Funda, na madrugada de um final de semana por mês, notívagos de preto e óculos escuros dançam ao som de house e techno misturados com batidas brasileiras.
“Vou construindo meu set com a energia da galera que está ali”, afirma a DJ Cashu, que segura quase quatro horas de apresentação acompanhada de uma garrafa de água e de uma lata de cerveja.
O séquito da festa Mamba Negra vira a noite e, por volta das 10h do dia seguinte, mata a fome nas barraquinhas de cachorro-quente que ficam em frente ao evento. Enquanto uns vão embora de transporte público ou táxi, outros aproveitam para emendar uma after party em outro lugar.
Criada por Carolina Schutzer —a DJ Cashu— e Laura Diaz em 2013, a Mamba Negra é um dos redutos de música eletrônica em São Paulo.
Com público fiel, é conhecida pelo seu ambiente inclusivo, onde trans e drags não pagam. Atualmente, a equipe —formada por cinco mulheres— engloba a organização das festas, selo de produções musicais independentes e geração de conteúdo.
A Mamba Negra tem como símbolo uma justaposição da boca da serpente com a genitália feminina. A inspiração veio da capa de “Às Próprias Custas S.A.”, disco do paulista Itamar Assumpção lançado em 1981. Já a adaptação da arte foi feita por Alexandre Lindenberg, um amigo do estúdio paulistano Margem.
A mais recente fase da cena eletrônica paulistana começou com a Voodoohop, festa criada em 2009 pelo produtor alemão Thomas Haferlach, que há quatro anos trocou as ruas de São Paulo pela Europa e pelas cachoeiras do interior do Brasil.
Nesta última década, muitas festas migraram dos clubes tradicionais para ruas e fábricas abandonadas.
Foi no ano da cobra, em 2013 —daí o nome—, que Cashu e Laura se conheceram e fizeram a primeira Mamba Negra. “Em 2009 rolou muita coisa na rua, começou a ter uma efervescência. De alguma maneira, havia uma resposta cultural mais expressiva —pelo menos no centro da cidade”, afirma Laura Diaz.
Cashu, a sócia, diz que, naquele ponto, não havia a dimensão do que a Mamba poderia vir a ser. “Não começamos colocando uma grana própria e falando: ‘É um investimento, vamos abrir um negócio’. Fomos fazendo festas que se autofinanciavam”.
Laura se lembra de que faltava um pouco de acidez na cena. “Para você conseguir ser mulher e ser artista, qualquer coisa, você tem que se produzir desde o zero e com muito tapa na cara”, conta.
A Mamba deu continuidade ao fluxo da Voodoohop, de reocupação do espaço público, adicionando um toque de militância ao pacote. Um exemplo é que Laura e Cashu sempre procuram incluir artistas negras e DJs mulheres nos eventos.
“Toda essa galera que vem junto é essencial, ganhamos muito com essas junções. Foi importantíssimo para criar uma ponte para rompermos a bolha de uma maneira real”, contam.
Noite Uirapuru Mamba REC
Qui. (6), a partir das 21h, no Mundo Pensante (r. Treze de Maio, 830, Bela Vista), com shows de São Yantó, Maria Beraldo e Teto Preto. Ingr.: R$ 20 a R$ 40