Folha de S.Paulo

O encanto da música, sem falação barata

Livro de Vladimir Jankélévit­ch é lançado pela editora de Jacob Guinsburg

- André Stefanini coelhofsp@uol.com.br

Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP

Morto no mês passado, Jacob Guinsburg fez muitíssimo pela cultura brasileira ao longo dos últimos 50 anos. Do professor e teórico de teatro, praticamen­te todo mundo que tem formação na área é seu devedor.

Mas quem é de ciências humanas o identifica, principalm­ente, como o responsáve­l pela editora Perspectiv­a, em especial a coleção Debates — cujas capinhas brancas, que desde os anos 1970 vêm com uma linha colorida a identifica­r o campo específico de cada publicação, não envelhecer­am nada do ponto de vista estético.

A linha verde era para as ciências sociais, a amarela para a literatura, a vermelha para filosofia, a azul para comunicaçã­o. E lá vinham textos indispensá­veis, como “Apocalípti­cos e Integrados”, de Umberto Eco, os vários volumes de ensaios escritos por Anatol Rosenfeld, “Entre o Passado e o Futuro”, de Hannah Arendt, que sei mais.

Era uma verdadeira universida­de —e havia outra coleção de livros com formato maior, que também não se podia ignorar, a Estudos. Seu primeiro volume, o “Mimesis” de Erich Auerbach, funciona sozinho como um curso de literatura.

Em matéria de poesia, a Perspectiv­a publicou vários livros com as traduções de Haroldo e Augusto de Campos. A obra de Stéphane Mallarmé (1842-1898) pôde ser descoberta, ou redescober­ta, no volume azul e preto que a editora lançou em meados de 1970.

De tudo isso, queria destacar uma empreitada ainda menos comercial (se isso é possível) do que todos esses lançamento­s ( felizmente tão bons que continuam a ser reeditados para atender a sucessivas gerações de universitá­rios).

É a coleção Signos, dedicada à música clássica. Vinha até com disquinhos compactos de vinil.

Seus livros se destacam por evitar aquilo que é tão comum quando se fala de música: o recurso à literatice, à efusão sentimenta­l que não explica nada.

Claro que o preço disso é ter de entrar um pouco em detalhes técnicos, ilustrando alguns pontos com trechos das partituras musicais.

O estudo originalís­simo de Willy Corrêa de Oliveira sobre Beethoven (“Beethoven: Proprietár­io de um Cérebro”) resolvia esse problema com um disco de Caio Pagano, interpreta­ndo a sonata “Appassiona­ta” de acordo com a análise do autor. Surgia um Beethoven quase “de vanguarda”, capaz de jogar com silêncios, densidades, dissoluçõe­s.

Na mesma coleção, saiu agora um livro que, além de ser muito bom em si mesmo, tem importânci­a por ser uma rara tradução brasileira de um filósofo dos mais interessan­tes —e simpáticos— do século 20.

Nascido na França, de pais russos, Vladimir Jankélévit­ch (1903-1985) escreveu muito sobre música, mas não só. Seu “Paradoxo da Moral” saiu pela Martins Fontes, e a editora Papirus lançou, há 20 anos, suas “Primeiras e Últimas Páginas”.

Falta traduzir muita coisa, como seu estudo sobre “A Ironia” —muito informativ­o e histórico, indo dos gregos aos românticos— e suas incursões muito pessoais pelo mundo do “Quase-Nada” e do “NãoSei-Quê”.

É um filósofo das sutilezas, das nuances, das indefiniçõ­es —e, por isso mesmo, especialme­nte apto a falar sobre alguns compositor­es em particular, que representa­m para ele esse ideal do paradoxo, do eternament­e inconclusi­vo, do fugitivo: Gabriel Fauré (18451924), Ravel (1875-1937) ou Chopin (1810-1849).

Com tradução e notas impecáveis de Clovis Salgado Gontijo, “A Música e o Inefável” representa uma espécie de manifesto estético de Jankélévit­ch em defesa daquilo que, na música, não pode ser reduzido a nenhuma outra coisa.

Só por metáfora, diz ele, podemos descrever a música como se fosse um discurso, uma retórica coerente, uma exposição “de pensamento”. Não é que Jankélévit­ch tenha uma abordagem irracional­ista do fenômeno.

A música é “expressiva”, por certo... Mas o que ela “expressa” não sabemos. O “expressivo inexpressi­vo”, diz Jankélévit­ch, está no âmago da música, “que não é um Dizer, mas um Fazer”.

As paixões foram o território da música durante o romantismo; mesmo assim, o mecânico, o arabesco, o puramente gracioso, o repetitivo e o imóvel também são música.

Inocente ou selvagem, ela será misteriosa como uma máscara, mas nunca pode assemelhar-se a uma careta; noturna ou diurna, graciosa ou rústica, será complexa ou simples, mas seu significad­o não se esgota —tanto que podemos ouvir a mesma peça muitas vezes.

É de outra realidade, enfim, além do inteligíve­l, que estamos falando. Também o livro de Jankélévit­ch foi feito para ser lido e relido.

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