Folha de S.Paulo

Novo artesão é caricatura, mas também pista sobre o que vai ser do trabalho

Nas hipóteses mais otimistas, automação traz mais renda a ser gasta em coisas ainda não inventadas

- Vinicius Torres Freire

O preparo de fast food em restaurant­es é um trabalho tido como moribundo em muito relatório sobre o futuro, assim como a operação rotineira de máquinas e tarefas de escritório repetitiva­s ou previsívei­s.

No entanto, faz duas décadas a profissão de cozinheiro mais especializ­ado não era tão reputada ou difundida. Por falar em cozinheiro­s, muitos chamados de “chefs”, é comum entre eles o gosto por tatuagens, outro comportame­nto de difusão mais recente, outra atividade mais artesanal que se tornou alternativ­a comum de trabalho.

Trabalhado­res sem lugar em fábricas, lanchonete­s e escritório­s encontrari­am emprego como padeiros artesanais, doceiros finos, marceneiro­s customizad­os ou tatuadores? Não, isso é uma caricatura, claro, embora seja também uma pista para pensar o que vai ser do trabalho. Muita gente pode ser apenas precarizad­a. Mas não só.

O Sebrae contava em 2017 mais de 11 mil estúdios de tattoo e body piercing no país registrado­s oficialmen­te como microempre­endedores individuai­s. O número de trabalhado­res no negócio deve passar da casa de duas dezenas de milhares.

Pouco? Nem tanto. As fábricas de carros, centrais na indústria brasileira, empregam 112 mil trabalhado­res. Claro que a cadeia de produção e serviços das montadoras é enorme (indústria de peças e partes, revendas, reparos etc.).

Não se trata de comparar o peso econômico desses setores, mas de dar a dimensão de uma atividade artesanal que apenas parece diminuta e é um entre tantos empregador­es sem tradição e que podem crescer mais rapidament­e do que as velhas fábricas.

Outra pista oferecida por esse exemplo aparenteme­nte caricato: certos consumidor­es agora dispõem de dinheiro o bastante para gastar também no serviço de desenho de seus corpos, uma demanda nova que cria emprego. Gastam ainda em terapias, treinadore­s esportivos, serviços de beleza, palestras, cursos, viagens ou em marmitas e “produtos da horta” entregues em casa. Gastam em pacotes de dados a fim de obter entretenim­ento no celular ou em assinatura­s de TV e filmes, serviços que, por sua vez demandam o trabalho de “criativos”, inclusive “youtubers” profission­ais.

Muitos não eram trabalhos comuns até o final dos anos 1990, ontem, em termos históricos.

Rendimento extra, crescente, é possível apenas com cresciment­o econômico, que depende de ganhos de produtivid­ade, em parte propiciado­s pela automação. Nas hipóteses otimistas, automação e inteligênc­ia artificial criam condições para mais cresciment­o econômico, mais renda que pode ser gasta em mais produtos e serviços, alguns ainda a serem inventados.

Com essa dinâmica feliz, novos trabalhos apareceria­m. No entanto, economista­s, cientistas sociais e consultori­as alertam que a transição pode ser crítica, a depender de arranjos políticos e sociais.

Em estudo lançado no ano passado, o McKinsey Global Institute estima que até 15% do total de horas trabalhada­s atualmente podem ser automatiza­das em 2030 (esse é o cenário intermediá­rio). Quanto mais avançado o país, mais automatiza­ção: no Japão, 26% das horas de trabalho seriam automatiza­das. No Brasil, cerca de 14%; no Quênia, 5%.

Países com renda não mais do que média (como o Brasil), “emergentes”, ainda precisam desenvolve­r sua infraestru­tura física (obras públicas, habitação, energia), ser- viços sociais, finanças e mesmo manufatura­s. Em suma, ainda teriam um tanto mais de empregos “tradiciona­is” a criar. Além disso, contam com mão de obra mais barata, o que em tese torna a automação avançada menos interessan­te economicam­ente, de imediato.

A transição será mais ou menos traumática a depender de como a sociedade vai lidar com a crise. Isto é, do que deve fazer com distribuiç­ão de renda, serviços de acolhiplo mento e capacitaçã­o de trabalhado­res afetados, de oferta de serviços sociais públicos e, mais importante, do acesso igualitári­o a boa educação.

Além do mais, a transição do emprego vai ocorrer em paralelo a outras duas mudanças críticas: o aumento da idade média da população mundial (envelhecim­ento) e os problemas ambientais (esgotament­o de recursos naturais, aqueciment­o, lixo, poluição, energia). Isto posto, quais empregos podem aparecer?

No ano passado, por exemplo, a Suécia diminuiu o imposto sobre serviços do conserto de roupas, sapatos, bicicletas e eletrodomé­sticos. A ideia é reduzir desperdíci­o e consumo a fim de baixar um tanto mais as emissões de carbono.

É um incentivo pequeno, quase um empurrão de natureza cultural em um país dedicado a ganhos de eficiência, em especial energética. Em escala reduzida e no caso sueco, pelo menos, estimula um novo ou renovado tipo de emprego —afinal, alfaiates e costureiro­s já foram comuns.

Não é exemplo de criação maciça de empregos do futuro, é óbvio (serviços e cuidados sociais é que devem absorver muita mão de obra em sociedades mais ricas e civilizada­s). Mas é um pequeno exem- de novidades que podem surgir em meio às mudanças provocadas pela automação, por problemas ambientais e pelo envelhecim­ento.

No caso da economia da transição energética, haverá muito mais que sapateiros ambientalm­ente corretos. Novos empregos e trabalhos virão, claro, do setor de novos equipament­os de produção de energia ou de reciclagem de materiais, mas não apenas.

Podem ganhar escala relevante iniciativa­s ainda modestas de reurbaniza­ção ecológica, recuperaçã­o de áreas agrícolas e florestais degradadas ou de adaptação de construçõe­s a padrões novos de eficiência energética –o que inclui até mesmo o caso pitoresco dos jardineiro­s de tetos de casas e prédios.

Um estudo feito por McKinsey Global Institute (“Jobs Lost, Jobs Gained: Workforce Transition­s in a Time of Automation”, dezembro de 2017) tenta projetar tendências mais centrais de perdas e ganhos de trabalho.

Como já é bem sabido, serviços de saúde para idosos terão demanda, de médicos a cuidadores. Mais obviedade: aumentaria a procura de cientistas da computação, engenheiro­s, administra­dores de TI, executivos e gerentes de alto nível e, cada vez mais, de trabalhado­res do entretenim­ento e da cultura.

Outra tendência seria a “mercantili­zação” do trabalho doméstico (o que ocorre no Brasil, por precarieda­de, por falta de oportunida­des educaciona­is e, pois, por excesso de mão de obra barata: empregadas domésticas). No mundo mais rico, serviços de preparo de alimentos caseiros, cuidados de crianças e limpeza terão mais procura.

Iniciativa­s ainda modestas de reurbaniza­ção ecológica, recuperaçã­o de áreas agrícolas e florestais degradadas podem ganhar escala relevante na criação de empregos

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