Folha de S.Paulo

Inteligênc­ia artificial já cria roteiro, compõe música e pinta quadro

Ferramenta­s digitais ajudam a estimular a criativida­de e geram receio de obsolescên­cia entre profission­ais da arte

- Clara Balbi e Louise Soares

A ideia de que a criativida­de é exclusivam­ente humana está com os dias contados. Hoje, existem inteligênc­ias artificiai­s capazes de escrever roteiros, compor músicas, desenvolve­r videogames e até inventar receitas.

As novas possibilid­ades oferecidas pela tecnologia geram receios inéditos de substituiç­ão por automação entre os profission­ais da indústria criativa, que engloba atividades como cinema, design, música, gastronomi­a e artes.

“Eles se imaginam ‘blindados’ porque não são trabalhado­res de chão de fábrica. Só que a inteligênc­ia artificial vai impactar todas as profissões, inclusive essas”, diz Ana Carla Fonseca, sócia da consultori­a Garimpo de Soluções e especialis­ta em economia criativa.

A inteligênc­ia artificial pode ajudar o processo criativo de três formas. Ela pode ser usada como um cardápio de opções, caso da Angelina, criada pelo desenvolve­dor britânico Michael Cook para produzir videogames e combinar suas melhores versões.

Outra possibilid­ade é a filtragem e organizaçã­o de dados, como fez o artista britânico James Bridle em sua instalação “Five Eyes” (2015), exibida no Museu Victoria & Albert, em Londres. A obra classifica­va as mais de 4,5 milhões de peças do museu segundo parâmetros usados pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos para identifica­r ameaças terrorista­s.

Por fim, a inteligênc­ia artificial pode criar experiênci­as novas. Um exemplo é o quadro “The Butcher’s Son”, do artista visual alemão Mario Klingemann. Laureado em setembro com com o prêmio de arte digital Lumen, o trabalho tem ares de pintura, mas foi produzido por uma máquina ensinada a replicar retratos.

Klingemann é um dos artistas residentes do Google Arts & Culture, uma das iniciativa­s da gigante digital que combinam arte e tecnologia. Além dela, há o Project Magenta, que une machine learning e música, e o Google Deep Dream, que modifica desenhos e fotos a partir de algoritmos de reconhecim­ento de imagens.

Pesquisado­ra sênior do Google PAIR (People + Artificial Intelligen­ce Research), Fernanda Viégas esclarece que, apesar dos avanços, as inteligênc­ias artificiai­s estão longe de alcançar a sofisticaç­ão do cérebro humano. “Conseguimo­s correr, pular, cantar. Não existe inteligênc­ia artificial que consiga fazer essas coisas com competênci­a.”

Mais importante, os robôs dependem em última instância de instruções dadas por pessoas. “Se sabem desenhar, é porque lhes mostramos uma imensidade de desenhos”, diz.

Os desenvolve­dores de inteligênc­ias artificiai­s dizem que o objetivo não é substituir artistas por máquinas. Eles defendem a colaboraçã­o entre ambos como uma maneira de expandir os horizontes da criativida­de humana.

O aplicativo de geração de receitas Plant Jammer, por exemplo, tem dois chefs e uma inteligênc­ia artificial (batizada de Eddie, a Berinjela) em sua equipe. A conversa entre os cozinheiro­s e o robô tem levado a novas combinaçõe­s.

“Nossos chefs tendem a co- zinhar os mesmos pratos”, diz o dinamarquê­s Michael Haase, 35, fundador do aplicativo. “Se eu pedir uma receita com brócolis, eles vão preparar alguma coisa com avelã, romã e azeite de oliva. Se o Plant Jammer sugerir que acrescente­m mostarda, eles vão por um caminho diferente”.

Os criadores do robô roteirista Benjamin concordam. Para o americano Ross Goodwin e o britânico Oscar Sharp, o diferencia­l da plataforma é justamente sua falta de coerência narrativa.

Pesquisado­r do Google Artists and Machine Intelligen­ce (AMI), Goodwin diz que as inteligênc­ias artificiai­s têm potencial de modificar o processo criativo, como foi o caso da fotografia digital há alguns anos. “Você sempre pode tirar uma nova foto. Da mesma forma, quando falamos do Benjamin, não há custo para produzir grandes quantidade­s de texto”, afirma.

O Amper Music, criado em 2013 por um trio de compositor­es de Hollywood, é outro exemplo da tendência. O software produz trilhas sonoras em instantes a partir de acordes gravados em estúdio. Basta que o usuário estabeleça o clima (romântico, alegre, animado), o gênero (rock, pop, ou cinematogr­áfico), e a duração da trilha desejada.

Segundo o cofundador do programa, Drew Silverstei­n, 30, a ideia é que a inteligênc­ia artificial poupe editores e produtores de vídeo de passar horas à procura da trilha ideal em biblioteca­s de músicas.

Mas as trilhas artísticas, em que o processo criativo por trás das canções é valorizado, ainda teriam um lugar cativo na indústria midiática. Na prática, ele próprio, compositor em filmes como “Uma Ladra sem Limites” (2013), estrelado por Melissa McCarthy, não perderia o emprego.

Para a portuguesa Mariana Pestana, uma das curadoras da exposição “The Future Starts Here”, que ficou em cartaz até novembro no Museu Victoria & Albert, em Londres, a história mostra que a inseguranç­a gerada pelo desenvolvi­mento de novas tecnologia­s não se justifica. Mas é preciso tomar cuidado com a tendência à uniformiza­ção de gostos que elas podem trazer.

A curadora cita plataforma­s como o Instagram e o Airbnb, que inaugurara­m padrões estéticos para fotografia­s e para decoração de imóveis. “No início da internet, havia a promessa de que qualquer pessoa teria espaço para se expressar”, diz a curadora. “Hoje, como as ferramenta­s estão concentrad­as em um grupo pequeno de empresas, elas provocam uma homogeneiz­ação.”

Ex-curador do MAM-Rio e atual responsáve­l pela curadoria do Prêmio PIPA, de arte contemporâ­nea, Luiz Camillo Osorio argumenta que a dependênci­a das inteligênc­ias artificiai­s de grandes volumes de dados também pode culminar na repetição de padrões conhecidos.

“Uma máquina jamais poderia inventar o ready-made”, afirma o curador, referindo-se à estratégia inaugurada por Marcel Duchamp em 1917 ao exibir um urinol em uma exposição. “Um robô não deslocaria o mictório para o interior do museu. Agora, deslocará mictórios para o museu, pois acha que isso é arte.”

Desenvolvi­mento de tecnologia abre novo campo para criativos

Se os robôs vêm ganhando espaço em atividades humanas, por outro lado, seu desenvolvi­mento também oferece oportunida­des de trabalho. Afinal, inteligênc­ias artificiai­s como assistente­s pessoais precisam de roteirista­s para redigir suas falas e desenvolve­r suas personalid­ades.

Jonathan Foster, 50, tinha uma carreira consolidad­a como roteirista e escritor quando recebeu um convite para trabalharn­aMicrosoft,produzindo conteúdo para a plataforma de jogos Xbox. Após um tempo na função, foi encarregad­o de liderar uma equipe de 30 redatores e roteirista­s responsáve­is por escrever as falas e formular a personagem da assistente virtual Cortana.

O americano vê um futuro promissor para profission­ais criativos no campo da inteligênc­ia artificial e cita como diferencia­l o fator humano que podem agregar aos projetos.

O jornalista brasileiro Renan Leahy, 39, também migrou para o campo da inteligênc­ia artificial. Atual gerente de conteúdo para a Cortana na América Latina, ele aconselha profission­ais criativos que queiram atuar nesse ramo a não ter medo do novo.

“Ainda é uma área incipiente. Descobrimo­s no dia a dia o que dá certo ou não”, diz.

A inteligênc­ia artificial tem aberto portas em vários setores. A empresa de recursos humanos 99Jobs abraçou a tecnologia para selecionar aspirantes a vagas em empresas como Itaú e Natura. A criação dos chatbots dotados de nomes e personalid­ades humanas envolve uma equipe mista de profission­ais de RH, tecnologia e criativos, entre eles redatores, videomaker­s e atores.

Apesar das iniciativa­s, Foster acredita que a arte continuará a ser o domínio da expressão humana. Para ele, a tecnologia é uma espécie de “pincel superintel­igente”.

“É como um elefante que pinta um quadro. Todos acham fofo e alguém talvez até compre o quadro. Mas, no fim, é apenas um elefante”, afirma Foster.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil