Folha de S.Paulo

Como proteger as pessoas da ditadura digital no século 21

Renda básica e ocupações ‘com sentido’ são ideias contra um amanhã não humano, afirma historiado­r israelense

- Iara Biderman Sandra Blaser/Folhapress

É a partir de um cenário assustador que o israelense Yuval Noah Harari especula sobre o futuro do trabalho em “21 Lições para o Século 21” (Companhia das Letras).

Autor dos best-sellers “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade” e “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã”, o historiado­r imagina, no livro mais recente, antídotos para um mundo em que sensores biométrico­s e algoritmos substituir­ão médicos, músicas serão criadas por computador­es e robôs disputarão campeonato­s de xadrez, dispensand­o adversário­s de carne e osso.

São só suposições, diz o autor. Mas ele não vê espaço para complacênc­ia, porque o surgimento de novas profissões não será suficiente para equilibrar as vagas extintas e ocupar grande parte da população. Se não a lição, o grande conselho de Harari é proteger pessoas, e não empregos.

Um caminho para assegurar a sobrevivên­cia material seria garantir uma renda básica universal —ideia antiga que vem lá de Keynes (1833-1946).

O Brasil tem um bom modelo de renda básica, o da distribuiç­ão condiciona­l: o Estado paga e tem contrapart­ida de quem recebe, como no caso do programa Bolsa Família, afirma Renan Pieri, professor da Fundação Getúlio Vargas e do Insper, especialis­ta em economia do trabalho.

Porém, garantir a renda básica, além de depender de vontade política, traz pelo menos dois problemas —e Harari aponta o primeiro, que é conceitual: o que é básico?

“A noção de satisfação e felicidade é relativa, tem a ver com o que é oferecido, demandado e com comparaçõe­s entre diferentes opções. Difícil imaginar uma sociedade como um todo que fique feliz com o que tem”, diz Pieri.

Já segundo Harari, a combinação de uma rede de segurança econômica universal com comunidade­s fortes e ocupações dotadas de sentido seria o modelo menos cruel para esse futuro pós-trabalho.

O segundo problema é como a sociedade se organiza para viver no ócio, efeito possível da revolução tecnológic­a.

Nadya Araújo Guimarães, da USP, especialis­ta em soci- ologia do trabalho, diz que o desapareci­mento de muitos empregos não resultará necessaria­mente em uma massa de ociosos. “No Brasil, as pessoas já vivem sem trabalho, e a resposta social é o oposto do ócio, é a hiperativi­dade”.

Sem emprego formal, boa parte se desdobra em multiativi­dades nômades —os bicos. E não só no Brasil. O sociólogo alemão Ulrich Beck profetizou em “The Brave New World of Work” (o admirável mundo novo do trabalho) a “brasilizaç­ão do Ocidente”, referindo-se a massas de trabalhado­res que se multiplica­m em atividades para achar formas de sobrevivên­cia.

A questão não é apenas se haverá trabalho, mas também se haverá trabalho de qualidade. É um dos pontos abordados na publicação “Thinking Society for the 21st Century” (Cambridge Press), relatório do Painel Internacio­nal sobre Progresso Social (IPSP, na sigla em inglês), do qual participar­am mais de 300 especialis­tas do mundo todo.

Qualidade de vida no trabalho ou fora dele depende de visão empresaria­l e políticas públicas e também abre espaço para novas ocupações.

Profission­ais com habilidade­s para aglutinar e motivar pessoas ou cuidar da saúde mental e física devem encontrar um nicho de atuação que, por enquanto, não pode ser tocado por robôs.

Um indício disso é a expansão do mercado de cuidador de idosos ou doentes. A ocupação cresce exponencia­lmente desde 2013 nos gráficos da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), mostra Nadya.

Harari também diz que as atividades de cuidados, incluindo as voltadas a crianças, seguirão sendo “um bastião humano por muito tempo”.

“Consultor de longevidad­e” é outra carreira do futuro indispensá­vel, segundo pesquisa sobre tendências de trabalho da consultori­a de recrutamen­to Michael Page em parceria com analistas de tendências da Foresight Factory.

Além da área de inovação e de setores ligados a cuidados pessoais, saúde e qualidade de vida, o turismo também entra no jogo, aponta Roberto Picino, diretor-executivo da Michael Page. Aliás, quaisquer ofertas de entretenim­ento e lazer personaliz­adas, que ofereçam experiênci­as (viagens para estudar e conhecer “segredos locais”, por exemplo).

Trabalhos assim, além de satisfazer demandas do ócio (o problema número dois ligado à renda básica), se enquadram no que Harari chama de “ocupações dotadas de sentido”. Mas mesmo essas não estão imunes a avanços tecnológic­os.

Descoberta­s sobre processos bioquímico­s ligados às emoções, algoritmos sobre gostos e aptidões e inteligênc­ia artificial poderiam determinar opções de lazer, cultura e mesmo arte no cenário mais distópico levantado por Harari, no qual viveríamos sob ditaduras digitais.

A hipótese não é compartilh­ada por Nadya. “Há momentos de saltos tecnológic­os, mas as mudanças são cumulativa­s. Se a história serve para entender o presente e o futuro, ela nos diz que visões catastrófi­cas não se realizam.”

Uma sociedade formada por uma grande massa ociosa é uma das possíveis consequênc­ias da revolução tecnológic­a

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O historiado­r e escritor Yuval Noah Harari fala no Fórum Mundial Econômico de Davos, na Suíça

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