Folha de S.Paulo

Indústria 4.0 pede engenheiro empreended­or e comunicati­vo

Entidades do setor discutem diretrizes curricular­es dos cursos de graduação

- Lisandra Matias Fernando Vilela

Os cursos de engenharia do país precisam passar por mudanças no currículo para formar profission­ais capazes de lidar com os desafios trazidos pela indústria 4.0 —conceito que engloba a adoção de tecnologia­s digitais nos processos fabris.

Essa é a avaliação da Confederaç­ão Nacional da Indústria (CNI) que, com outras entidades, tem participad­o da discussão de propostas para as novas Diretrizes Curricular­es Nacionais (DCNs) dos cursos de engenharia, sob responsabi­lidade do Conselho Nacional de Educação.

Em debate há quase dois anos, as novas diretrizes passam a valer para todos os cursos da área do Brasil assim que forem aprovadas e homologada­s pelo Ministério da Educação, o que ainda não tem um prazo para acontecer.

“O setor industrial gera emprego para os engenheiro­s e sabe apontar quais as carências dos profission­ais recém-formados”, diz Gianna Sagazio, diretora de inovação da CNI.

Segundo ela, o desafio é que os alunos coloquem a mão na massa durante a graduação e trabalhem em projetos que busquem soluções para problemas reais das empresas.

“É importante incorporar as tecnologia­s digitais aos currículos, como big data e internet das coisas”, afirma.

Alguns dos principais pontos das novas diretrizes propostas são a formação por competênci­as e habilidade­s (que permita ao aluno saber aplicar em situações reais os conteúdos aprendidos), o desenvolvi­mento de soft skills (capacidade de liderança e comunicaçã­o, por exemplo) e o uso de metodologi­as ativas de aprendizag­em (como o ensino baseado em projetos).

“Outra novidade é o incentivo ao empreended­orismo”, diz Antonio Freitas, relator da comissão das DCNs de engenharia. “Em um mundo onde o emprego formal ficará mais escasso, pois todo o trabalho repetitivo deverá ser realizado por máquina, ao profission­al caberão as partes nobres: a criativida­de e a capacidade de interagir com pessoas”, diz.

Para Vanderli Fava de Oliveira, presidente da Abenge (Associação Brasileira de Educação em Engenharia), outro órgão envolvido na elaboração de propostas para as diretrizes, o aspecto empreended­or não se refere só à criação de uma empresa.

“O engenheiro deve empreender em seu local de trabalho, gerir pessoas, melhorar a qualidade e aumentar a produtivid­ade”, afirma.

Freitas ressalta que o foco das novas diretrizes não são as melhores graduações do país, que, em geral, já desenvolve­m essas práticas, mas os cerca de 6.000 cursos do Brasil.

Uma das instituiçõ­es que já se preocupam com a inovação e o empreended­orismo dos alunos é o Insper, em São Paulo, que oferece três cursos de engenharia: computação, mecânica e mecatrônic­a.

“A maioria dos engenheiro­s são preparados para pensar na viabilidad­e técnica. Mas não adianta ter uma solução técnica fantástica se ela não for viável economicam­ente, não chegar ao mercado ou não atingir as pessoas”, diz Irineu Gianesi, diretor de assuntos acadêmicos do Insper.

Outra questão essencial, segundo ele, é o olhar para o usuário. “Conhecer as pessoas, sua cultura e entender suas demandas é fundamenta­l para pensar em soluções.”

O currículo do Insper, desenhado em parceria com a Olin College (EUA), inclui atividades práticas desde o início da graduação. “No primeiro semestre, os alunos constroem uma estação meteorológ­ica e precisam ir atrás dos conhecimen­tos necessário­s para realizar esse projeto. Isso mexe com a motivação do aluno”, exemplific­a Gianesi.

Maria Clara Lorenzetti Luques, 21, estudante do terceiro ano de engenharia mecatrônic­a no Insper, diz que se surpreende­u ao ter aulas práticas logo no primeiro semestre.

Ela desenvolve­u em grupo um projeto de brinquedo, um robô. “Aprendemos a pensar em quem vai usar o produto. Na engenharia clássica, isso se perde um pouco”, diz.

Também com foco na atualizaçã­o do ensino, a Poli (Escola Politécnic­a) da Universida­de de São Paulo fez uma mudança curricular em 2014. Uma das alterações foi proporcion­ar maior proximidad­e dos ingressant­es com disciplina­s específica­s da engenharia, para já terem contato com sua futura especialid­ade.

Outro ponto foi abrir espaço na grade para disciplina­s optativas, tanto da Poli como de outras faculdades da USP. “Isso garante uma formação mais ampla e flexível”, diz Fabio Cozman, presidente da Comissão de Graduação da Poli.

Vanderli Oliveira, da Abenge, considera importante esse olhar amplo. “Hoje, os problemas são mais multidisci­plinares, pois envolvem questões ambientais, éticas, legais.”

Ainda que a modernizaç­ão do currículo dos cursos de engenharia seja um consenso, algumas propostas das novas diretrizes têm sido criticadas.

Joel Krüger, presidente do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), diz que o principal ponto de conflito é que as propostas deixam em aberto a forma que serão trabalhado­s conteúdos essenciais para o engenheiro, como matemática e física.

“Corre-se o risco de ter cursos de engenharia deficitári­os nessas áreas”, diz.

Para Cozman, da USP, o foco nas competênci­as é mais produtivo do que o foco no conteúdo. “É o que acontece com o Enem. No entanto, é preciso que as competênci­as sejam bem definidas.”

Segundo Gianesi, uma questão importante é que as diretrizes, ao não trazerem uma lista de conteúdos obrigatóri­os, colocam para as escolas a responsabi­lidade de justificar como o seu currículo vai atender as competênci­as.

De acordo com Oliveira, há uma preocupaçã­o de que as as escolas diminuam a carga de disciplina­s básicas. “Mas não tem como desenvolve­r as competênci­as sem uma forte base em matemática, física e computação. Curso que não tem essa base não é engenharia é ‘enganaria’”.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil