Folha de S.Paulo

Ideologia, alguém?

Palavra que o bolsonaris­mo associa apenas à esquerda explica mais do que isso

- Sérgio Rodrigues

Agora que “ideologia” voltou a ser uma palavra importante, associada a tantos adjetivos afrontosos (petista, gayzista, globalista, comunista etc.), convém nos entendermo­s sobre ela. A empreitada é mais complicada do que parece.

Agora que “ideologia” voltou a ser uma palavra tão importante, associada a tantos adjetivos mimosos (petista, gayzista, globalista, comunista etc.), convém nos entendermo­s sobre ela. A empreitada é mais complicada do que parece.

No livro “Ideologia: Uma Introdução” (Boitempo/Unesp), o crítico literário inglês Terry Eagleton apresenta uma lista de 15 definições, algumas incompatív­eis entre si.

De “processo de produção de sentidos, signos e valores na vida social” a “ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante”, passando por “ilusão socialment­e necessária”, a ideologia arrasta uma cauda de pavão de significad­os.

Quando nasceu, de parto induzido, na escrivanin­ha do iluminista francês Destutt de Tracy (1734-1836), era “ciência que estuda as ideias”. A primeira acepção foi parar no museu, mas a palavra estava destinada ao estrelato.

Meio difusa e sujeita a retoques sem fim, tem grande importânci­a no pensamento de Karl Marx (1818-1883) e seus seguidores. Para o autor de “A Ideologia Alemã”, era uma pátina simbólica aplicada sobre as relações materiais, econômicas, naturaliza­ndo a história e mascarando a violência.

Quer dizer, ideologia era a mentalidad­e imposta pela burguesia para vender o capitalism­o como “a vida é assim mesmo”. Curiosamen­te, a palavra começou a marcar o século 20 associada às ideias marxistas. Logo explicava também o fascismo, a democracia liberal, os hippies etc.

Ideologia virou qualquer kit de concepções políticas, morais, religiosas e estéticas que paute um indivíduo ou um grupo. Aí temos um problema: se ideologia é tudo isso, o próprio solo do pensar e do sentir, haverá algo que ela não seja?

Por exemplo, que sentido faz aquela declaração de Paulo Guedes à repórter Malu Gaspar, da piauí? “Olha o custo, olha como a ideologia é cara. É burrice ter ideologia.” Devemos entender que os bebedouros da escola de Chicago dão imunidade contra algo tão universal nas sociedades humanas?

O que se lê na frase do superminis­tro e de outros bolsonaris­tas, os maiores patrocinad­ores da recondução da ideologia ao centro do debate político, vai além da suposição ingênua de que ideologia é como sotaque, só eu não tenho.

Guedes recorre ao sentido dominante da palavra neste século que o 11 de setembro re-ideologizo­u na marra: conjunto de condiciona­mentos e dogmas que distorce a percepção da realidade e nos faz tomar decisões contrárias aos nossos interesses.

Como, digamos, enterrar um trilhão de dólares em republique­tas de esquerda, um dos crimes do PT inventados (como se faltassem crimes reais) pelo imaginoso ideólogo Olavo de Carvalho.

Agir ideologica­mente seria então contrariar o bom senso em nome de ideias preconcebi­das. Eagleton atribui a paternidad­e dessa acepção ao sociólogo Émile Durkheim (18581917) e observa: “O oposto de ideologia seria, aqui, menos a ‘verdade absoluta’ do que o ‘empírico’ e o ‘pragmático’.”

Então vamos ver. Haverá uma molécula de pragmatism­o naquelas decisões —ou planos, acenos, difícil nomear— tão caras ao governo eleito, da transferên­cia da embaixada para Jerusalém à eleição da questão ideológica como problema central de uma educação em frangalhos?

A resposta, cristalina, é não. Segundo seu próprio critério, aqueles que mais têm alertado no Brasil para o atraso de vida representa­do pela rigidez ideológica estão atolados em ideologia até o pescoço. Surpreso, alguém?

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