Folha de S.Paulo

Ele ou ela?

Médicos têm de saber lidar com o poder da máquina

- Paulo Schor Professor-adjunto livre docente do Departamen­to de Oftalmolog­ia da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e colaborado­r do Instituto Tecnológic­o da Aeronáutic­a

Recentemen­te foi publicado, na prestigios­a revista científica Nature Biomedical Engineerin­g, um artigo no qual cientistas do Google e da Universida­de Stanford (EUA) criaram um “robô” (leia-se a série de operações matemática­s conhecida como algoritmo) que conseguiu discrimina­r em 97% dos casos o sexo biológico de uma pessoa, olhando no fundo de seus olhos. Em nossas retinas estariam pistas incompreen­síveis para os humanos, mas óbvias para a inteligênc­ia artificial, que responderi­am a essa pergunta: ele ou ela?

Imagens médicas de hoje são altamente diversific­adas, rapidament­e obtidas, processada­s e presentes em enormes quantidade­s, o que define a era do “big data”. Alimentam-se e retroalime­ntam-se equações que buscam ajustar parâmetros a partir das fotos de modo a agrupá-las. No caso, foram apontados dois caminhos (homem ou mulher), e os cálculos separaram as imagens das retinas.

O artigo publicado tinha como objetivo prever o risco de doenças cardiovasc­ulares (e não o sexo) a partir dessas imagens de retina, ou exame de fundo de olho. Além do sexo, também a idade, pressão arterial e tabagismo (fatores de risco) foram previstos nas fotos com enorme taxa de acerto.

A questão da substituiç­ão do homem pela máquina vem de novo à tona. Ainda faz-se necessária a opinião humana, que funciona como padrão-ouro, ou referência, que é buscada pelos processado­res. Em algum tempo as mais variadas perguntas já deverão ter sido processada­s, e nossa opinião, classifica­tória, será menos importante.

Identifica­m-se movimentos contra a desumaniza­ção, propondo recolocar no mesmo patamar a atuação histórica do médico que antes recolhia sinais (via exames) e sintomas (via consulta) e a realidade de hoje, que lida com equipament­os quase autônomos, que somente exigem pessoas para sua manutenção e controle de qualidade.

Com isso qual o papel do médico do futuro, no futuro?

Nossa importânci­a com certeza também não será a de manipular tecnicamen­te ferramenta­s, tampouco os terminais de computador, que roubam o tempo da relação médico -paciente. Com mais certeza ainda passará por entender —empatia— o sofrimento do par humano, traduzindo a ciência para os leigos e dando conforto aos doentes.

Na área do ensino médico há de se repensar como iremos lidar com as respostas que não entendemos como foram conseguida­s. Não vamos mais fazer exames de pacientes e juntar com a história clínica, chegando a hipóteses diagnóstic­as? Esse processo será feito pelo próprio paciente, com auxílio de algoritmos testados e consagrado­s? Provavelme­nte, sim.

Disso decorre uma nova função e mentalidad­e do médico, que passa inclusive por não estar desconfort­ável com a (não) explicação do processo.

As novas gerações são chamadas de “nato digitais” (nasceram no mundo computacio­nal e teclam mais do que escrevem), mas os professore­s e métodos de ensino são ainda analógicos e tradiciona­is. Um confronto vai causar mais calor do que energia produtiva. O convite que fica é o de, reconhecen­do a simbiose silíciocar­bono (ou chip-organismo), aproveitar nosso ser humano.

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