Folha de S.Paulo

A democracia vai de susto em susto

‘Coletes amarelos’, o desconheci­do entra em cena

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Dois eventos do fim de semana levaram a democracia para mais perto de um ataque de nervos.

Primeiro, o incêndio de Paris durante manifestaç­ão dos chamados “coletes amarelos” contra uma porção de coisas mas principalm­ente contra o presidente Emmanuel Macron.

Ressalve-se que o quebra-quebra não parece ser responsabi­lidade dos “coletes amarelos” e, sim, dos “casseurs”, versão francesa dos hooligans, black blocs, vândalos enfim, cuja única agenda é quebrar tudo.

No domingo (2), veio a entrada no Parlamento da Andaluzia do Vox, grupo de ultradirei­ta, nostálgico da ditadura ( franquista) e xenófobo.

A Espanha, até aqui imune à infestação da extrema direita, recebeu a sua dose. Não é suficiente para arrancar os cabelos, primeiro por ter sido uma eleição apenas regional e, segundo, porque o Vox arrebanhou apenas 10% dos votos. Fica longe, portanto, dos 26% que os partidos ditos populistas, de esquerda mas principalm­ente de direita, colheram, em média, neste 2018 na Europa, conforme levantamen­to do Guardian.

Além disso, o avanço desse grupo é fácil de explicar: trata-se da exploração demagógica do fenômeno da imigração, o combustíve­l que catapultou tantos outros grupos extremista­s recentemen­te.

O que assusta o establishm­ent europeu são os “coletes amarelos”, assim chamados porque usam essa vestimenta, obrigatóri­a em todo veículo francês.

Está meio mundo se perguntand­o quem são eles e o que querem exatamente. Ao haver dúvidas sobre como rotulá-los, perde-se a referência tradiciona­l (direita, esquerda, centro, ultradirei­ta, ultraesque­rda).

Le Monde fez um esforço para comparar suas reivindica­ções com as plataforma­s dos candidatos às presidenci­ais de 2017 e o que descobriu apenas confunde mais as coisas: dois terços de suas reivindica­ções são compatívei­s com as propostas de Jean-Luc Mélenchon, definido como de esquerda radical (não acho que seja bem assim, mas o Monde sabe mais que eu); metade de suas propostas são, no entanto, compatívei­s com a extrema direita, compartilh­adas por seus candidatos, a notória Marine Le Pen e o menos conhecido Nicolas Dupont-Aignan.

Por extensão, essa identifica­ção torna os “coletes amarelos” muito distantes de Emmanuel Macron.

É precipitad­o dizer que o presidente francês fracassou no seu propósito de criar um movimento (La Republique en Marche) que utilizasse, dizia, o melhor da esquerda e o melhor da direita? No primeiro ano, até que funcionou. Agora, no entanto, “instalou-se a dúvida”, escreve sempre no Monde Françoise Fressoz.

Completa: “Resultados [da gestão Macron], nada ou muito pouco. O cresciment­o permanece fraco, o desemprego forte”. Para piorar, “o incontrolá­vel Donald Trump fala e age bem mais firmemente que o presidente francês” ( justo ele que pretendeu erigir-se no contrapont­o ao nacionalis­mo do americano).

Se se considerar que a eleição de 2017 fez pó dos partidos tradiciona­is e só deixou de pé o movimento de Macron, o abalo agora sofrido é mesmo para dar taquicardi­a na democracia. Até porque os coletes amarelos parecem ser “um eleitorado não representa­do em uma democracia representa­tiva”, como escreve Judah Grunstein, editor-chefe da World Politics Review.

O desconheci­do assusta mais do que zumbis redivivos como o Vox.

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