Murilo Benício surpreende em direção de longa
Ator estreia como diretor em ‘O Beijo no Asfalto’, adaptação cinematográfica de peça escrita por Nelson Rodrigues
O Beijo no Asfalto
Brasil, 2017. Direção: Murilo Benício. Elenco: Lázaro Ramos, Débora Falabella, Otávio Müller, Luiza
Tiso e Fernanda Montenegro. Estreia nesta quinta (6)
Apesar da riqueza de linguagem alcançada por boa parte do cinema e do teatro feitos no Brasil, essas duas expressões pouco dialogam entre si.
Entre os filmes recentes que recorreram aos recursos cênicos está “Moscou” (2009), em que o diretor Eduardo Coutinho acompanhou ensaios de uma peça de Tchékhov.
Coutinho se valia da ficção para repensar o registro documental. No novo “O Beijo no Asfalto”, Murilo Benício toma um caminho inverso. Lança mão da realidade (ou do que supomos que seja a realidade) para reelaborar o texto clássico de Nelson Rodrigues. Ator que faz sua estreia na direção de um longa, Benício não alcança a inventividade de Coutinho —e nem seria justo esperar isso dele. Mas seu filme é uma bela surpresa.
“Beijo” começa no palco de um teatro. Ao redor de uma mesa, atores discutem a tragédia carioca de Nelson e interpretam trechos da peça. Sem sobressaltos, os bastidores se abrem para a trama.
O cinema europeu tem explorado recursos semelhantes há décadas. O intuito é, grosso modo, quebrar a mágica da ilusão. Benício não criou algo novo, mas soube fazer bom uso do artifício.
“O Beijo no Asfalto” foi escrita por Nelson em 1960 a pedido de Fernanda Montenegro, que está no novo filme. A peça foi montada pelo Teatro dos Sete, grupo do qual a atriz fazia parte.
É, portanto, um texto teatral por excelência, o que ajuda a explicar as opções do diretor.
Arandir (Lázaro Ramos) vê um atropelamento e tenta socorrer a vítima. Prestes a morrer, o homem pede um beijo, desejo atendido por Arandir.
O episódio é testemunhado por Amado Ribeiro (Otavio Müller), um repórter louco por um estardalhaço.
O moralismo corre solto, e as maledicências chegam aos ouvidos de Selminha (Débora Falabella) por meio da vizinha, dona Matilde (Fernanda Montenegro).
Na pele da personagem deliciosamente cínica ou como comentarista da obra de Nelson, a presença de Fernanda é, mais uma vez, luminosa.
Outro trunfo do elenco é Müller, talvez na sua melhor interpretação no cinema.
Benício também acertou ao convidar Walter Carvalho para a direção de fotografia. É o preto-e-branco a serviço de um noir suburbano.
Se, a rigor, não há invenção, Benício tampouco se acomodou em fórmulas. E soube se cercar de boas companhias. Seu “Beijo” merece respeito.
Tinta Bruta
Brasil, 2017. Direção: Filipe Matzembacher e Marcio Reolon. Elenco: Shico Menegat, Bruno Fernandes, Guega Peixoto. 18 anos. Estreia nesta quinta (6) Pedro (Shico Menegat), o protagonista de “Tinta Bruta”, vive de fazer shows eróticos em frente à webcam. Sob o codinome de Garoto Neon, pinta o corpo com tinta fluorescente e brilha sob a luz negra do quarto. A plasticidade de seus movimentos seduz os frequentadores de um site, que pagam para vê-lo.
Os primeiros espectadores do longa de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon também ficaram seduzidos. Na estreia, no Festival de Berlim, levou o Teddy, dedicado a produções de temática LGBT. O Festival do Rio concedeu ao longa os prêmios de melhor filme, roteiro, ator e ator coadjuvante.
Da mesma dupla de diretores de “Beira-Mar” (2016), “Tinta Bruta” impressiona mais pela rara beleza de suas imagens do que pela história propriamente dita. Não que ela seja banal, mas boa parte dela já ocorreu quando o filme começa.
Pedro é um garoto de cerca de 20 anos que perdeu a mãe na infância e vive com a irmã, Luiza (Guega Peixoto), em Porto Alegre.
Vítima de bullying, ele explodiu e cometeu um ato violento que lhe valeu a expulsão da faculdade e um processo na Justiça. Agora, passa a maior parte do tempo só, num apartamento de poucos móveis. A irmã está de mudança para Salvador.
Vamos compreendendo os meandros dessa trama aos poucos, em diálogos que, apesar de filmados em sequências por vezes bastante longas, são econômicos, de falas escassas.
Desde o plano-sequência inicial, a duração é um dado fundamental de “Tinta Bruta”. Com poucos cortes, os shows de Pedro, seus deslocamentos pelas ruas da capital gaúcha e sua movimentação pela arquitetura do velho prédio onde vive trazem algo de hipnótico.
Quando surge o encontro amoroso entre Pedro e o bailarino Leo (Bruno Fernandes), a união plástica dos dois corpos que passam a se exibir juntos importa mais do que as palavras que trocam.
Enlaçados na dinâmica de voyeurismo-exibicionismo, observamos a tinta muito rosa tingir os lábios de Leo ou as pálpebras de Pedro, o amarelo passar de um corpo a outro e depois para o lençol, o laranja salientar músculos e tatuagens.
Há, é verdade, algo de autocomplacente na maneira de fazer durar as cenas de sexo, de banho, de dança. Ou de mostrar os corpos nus. Mas, quando Leo inicia o monólogo em que conta a história de Pedro, a quebra no ritmo de montagem surpreende e dá força à lírica sequência, uma das mais bonitas do filme.
Talvez “Tinta Bruta” pudesse, com alguns minutos a menos, trazer uma narrativa mais elegante. Trata-se, porém, de um filme importante, que conduz o espectador por caminhos insuspeitos, até o final.
Henfil
Brasil, 2017. Direção: Angela Zoé. 12 anos. Estreia nesta sexta (6)
Entre os final dos anos 1960 e a década de 1970, poucos homens de imprensa incomodaram tanto a ditadura militar quanto Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988).
Em publicações como “O Pasquim”, os personagens do cartunista satirizavam a repressão do governo e o moralismo da família brasileira.
Às vésperas dos 50 anos do AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, quando a censura se tornou mais severa, estreia o documentário “Henfil”, dirigido por Angela Zoé.
O timing do lançamento é ótimo. O filme nem tanto.
A diretora busca solução original ao acompanhar jovens que aprendem a desenhar os personagens do autor mineiro e preparam uma animação.
É uma oportunidade de rever criações como a Graúna, primor do traço minimalista de Henfil. Mas as passagens em sala de aula não trazem surpresa ou encantamento. Aquilo que parecia uma boa ideia resulta fraco, na prática.
Mais convencional, outra via percorrida pelo documentário reúne depoimentos de gente próxima. Companheiro de Henfil na fase mais brilhante do “Pasquim”, Ziraldo comenta o domínio técnico do amigo. Mas por que não se restringir aos melhores depoimentos? Ao acumular platitudes, o filme patina.
Nas gravações de época, Henfil faz micagens para a câmera, como um Chaplin obsceno. Passagens assim, aparentemente prosaicas, ganham força poética. O homem que ria do poder também sabia rir de si mesmo.
Existem virtudes, mas elas surgem de modo esparso. Ao fim, fica a sensação de que Henfil merecia outro filme, tão corajoso quanto ele foi.