Folha de S.Paulo

Votaram em quem?

Ranço autoritári­o talvez seja razão para ‘esclarecid­os’ votarem em Bolsonaro

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série ‘Psi’ (HBO) ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

No segundo turno das presidenci­ais, vários amigos e conhecidos votaram em Haddad, “tapando o nariz” sobre o cheiro do PT. Outros, com sentimento­s parecidos, anularam seu voto.

Para outros, porém, a decepção falou mais alto do que qualquer desconfian­ça: votaram em Bolsonaro para votar contra o PT, cansados da corrupção, do aparelhame­nto do Estado e da incompetên­cia do governo Dilma.

E, ainda, vários amigos e conhecidos meus votaram em Bolsonaro positivame­nte, ou seja, não contra o PT, mas por aquilo que o candidato propunha: mais segurança, menos corrupção e uma guinada liberal na economia.

A maioria desses amigos e conhecidos bolsonaris­tas declara de antemão que despreza os ranços bizarramen­te caretas da campanha de Bolsonaro. Mas eles sequer se preocupam com isso, pois lhes parece óbvio que os evangélico­s e os TFPs não irão interferir na vida de ninguém.

Esses dois grupos dos eleitores de Bolsonaro que eu conheço —os que afirmam que votaram contra o PT e os que dizem que votaram para uma mudança econômica sem a qual o país iria pelo ralo— têm algo em comum: nas conversas que eu presenciei, eles afirmam que votaram em Bolsonaro e, a seguir, também afirmam que eles não concordam com o moralismo tacanho, por exemplo, dos futuros ministros da Educação ou das Relações Exteriores.

“A cada vez que via a Gleisi Hoffmann na TV, queria votar mais no Bolsonaro, mas não tenho nada a ver com Malafaia, viu?” “Votei nele, sim, mas sou totalmente feminista; o que importa hoje é permitir ao país uma virada modernizad­ora, justamente.”

Claro, entre os eleitores de Bolsonaro, deve haver uma parte grande de indivíduos explicitam­ente engajados no projeto de impor aos outros as regras de conduta que eles idealizam (e que eles mesmos, aliás, mal conseguem seguir). Os indivíduos que gostam de regrar a vida dos outros, eu chamo de boçais —salientand­o que os boçais não são uma prerrogati­va do eleitorado de Bolsonaro, eles existem no espectro político inteiro.

Os bolsonaris­tas com quem converso não são boçais: eles dizem que votaram quer seja contra o PT, quer seja para promover uma reforma liberal da economia —sem por isso apoiar em nada as ideias ou o temperamen­to autoritári­o dos que gostariam de regrar o comportame­nto dos outros.

Agora, a questão está justamente aí: “eles dizem” isso MUITO. À força de escutar negações preventiva­s que não eram solicitada­s nem por mim nem por ninguém, comecei a duvidar delas.

Para a psicanális­e, a negação não solicitada é suspeita: “Sonhei com uma mulher mais velha, loira como minha mãe, mas não era minha mãe, não era mesmo”. Claro, claro…

Da mesma forma, negando com força sua adesão à agenda mais boçal da base de seu candidato, talvez esses eleitores estejam revelando uma adesão que eles mesmos, racionalme­nte, ignoram.

Para esses eleitores que se consideram “esclarecid­os”, o ranço autoritári­o, antidemocr­ático, homofóbico, misógino e racista não seria algo que eles tiveram que engolir (tapando o nariz) para acabar com o PT ou para ter uma política econômica liberal. Na verdade, para eles, o tal ranço talvez seja a verdadeira razão para eles votarem em Bolsonaro — uma razão que eles escondem de si mesmos.

Não só no Brasil, ao longo dos últimos 30 anos, constituiu-se uma classe média aparenteme­nte esclarecid­a, ou seja, que compartilh­a, em tese, o ideal social-democrata que parecia prevalecer no mundo.

Mas 30 anos é muito pouco, e a mudança pedida é muito grande: essa classe supostamen­te esclarecid­a engoliu mas não digeriu quase nada das “conquistas” das últimas décadas —nem o feminismo, nem o MeToo, nem os direitos das minorias raciais e sexuais —e, no fundo, nem os próprios direitos civis.

Ao contrário, o aparente triunfo dessas reivindica­ções as tornou mais indigestas para essa classe, que certamente gostava de seus pequenos privilégio­s mais do que ela admitia.

Seu racismo, sua misoginia e sua homofobia ficaram como uma espécie de pequena dor de dentes, quase esquecida. Até o dia em que alguém veio liberá-los, ou seja, conclamar que não era vergonhoso pensar nada do que eles não se permitiam mais pensar.

Alguns foram para a rua caçar veado. Outros foram para exterminar vermelhos. Outros ainda, para censurar e chantagear professor. Outros, os mais modestos, disseram que eles não concordam, mas, enfim, é preciso salvar o país, não é?

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Mariza Dias Costa

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