Folha de S.Paulo

Violonista dá sofisticaç­ão inédita a peças americanas

Fabio Zanon elege 22 miniaturas de caráter popular e folclórico de 16 países espalhados pelo continente

- Sidney Molina

Americas

Artista: Fabio Zanon. Selo: GuitarCoop. R$ 30. Recital de lançamento nesta quinta (6), às 19h, na Sala do Coro da Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, 16). Grátis

Uma máxima afirma que os grandes intérprete­s se revelam no repertório menos ambicioso; como toda generaliza­ção a frase é imprecisa, mas, a seu modo, ajuda a situar as contradiçõ­es que conduzem da notação no pentagrama ao esforço corporal do instrument­ista.

No caso do violão —cujo cânone se estabelece­u somente no século 20, em plena era que consagrou o disco—, o ângulo de ataque das unhas sobre as cordas, as opções de dedilhado e até mesmo as madeiras escolhidas e utilizadas pelo construtor chegam a rivalizar com os acordes e as melodias na produção de sentidos poéticos.

Tudo isso vem à mente ao longo da escuta de “Americas”, novo álbum do violonista brasileiro Fabio Zanon para o selo GuitarCoop (disponível em formato físico e também para download, o que inclui uma versão HD 24 bits de alta qualidade).

Conhecido pelo domínio de um repertório extenso e por uma discografi­a celebrada, que abarca o registro da obra completa de Heitor Villa-Lobos, sonatas de Scarlatti, música espanhola e peças do alto romantismo, ele agora deixa de lado as grandes composiçõe­s para eleger 22 miniaturas de caráter popular e folclórico de 16 países das três Américas.

Não se trata, no entanto, de um CD de música popular: são as belezas da música clássica —seu foco na degustação do som, no arco das melodias, nos contrastes de tempo e na escolha precisa dos afetos— que conduzem a viagem de Zanon pelo continente.

Ele utiliza um violão Hauser 2, construído na Alemanha em 1971, sem dúvida a melhor escolha de toda a sua discografi­a —mesmo consideran­do que nela estejam incluídos renomados luthiers como Abreu, Rubio e Bouchet.

O instrument­o tem sonoridade similar à do que é utilizado no LP “The Art of Julian Bream” (1960), que fez decolar a carreira do grande violonista inglês.

Talvez por ser um instrument­o de sua própria geração (o violão é apenas cinco anos mais jovem do que o violonista), Zanon, 52, não toca como se tivesse nas mãos uma peça de museu.

Ele se apropria sem medo de seus recursos, o que inclui por vezes uma pegada intensa, com muito volume, mas que nunca perde a elegância (exemplos são as peças do colombiano Gentil Montaña e da argentina Maria Luísa Anido).

Através de uma ambiência perfeita e graves firmes, Zanon passa prazerosam­ente por um timbre metálico sem arestas, e trabalha com gosto os “crescendo” dinâmicos (como na “Danza Paraguaya”, de Agustín Barrios).

O intérprete parece especialme­nte feliz com as inúmeras opções de sonoridade nas peças mais lamentosas do álbum, como a “Balada para Martín Fierro”, do argentino Ariel Ramírez, ou na amplidão de “Triste n.1”, do uruguaio Eduardo Fabini. Um grande achado é “Aire Índio n.2”, do boliviano Eduardo Caba (1890-1953).

Na “Folk Dance from Honduras” a nota repetida contrasta com a melodia grave doce, o baixo nervoso e o acompanham­ento metálico no agudo: é uma aula sobre como uma peça singela e quase kitsch pode deixar o ouvinte hipnotizad­o.

É possível dividir o álbum em dois momentos, dois “lados” pontuados pelas duas únicas composiçõe­s brasileira­s, o xaxado “Emboscada”, de Paulo Bellinati (faixa de abertura), e o “Bate-Coxa”, de Marco Pereira (faixa 14), que renova a energia do ouvinte para além do próprio álbum.

Duas décadas atrás, Carlos Barbosa-Lima —outro grande violonista brasileiro— migrou do repertório especulati­vo para arranjos virtuosos de música latina; apesar de incluir no CD sucessos do passado (como “El Día que me Quieras”, de Carlos Gardel), esse certamente não é o caso de Zanon.

“Americas” é um (bem-vindo) fluxo de leveza na carreira de alguém cujo papel na música brasileira atualmente transcende a referência a seu próprio instrument­o: o álbum é, até aqui, o melhor de Fabio Zanon.

E isso não é pouco.

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