Folha de S.Paulo

Diplomacia a quatro mãos

País pode ter na política externa rótulo pró-EUA e na comercial viés pró-Ásia

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

Celebrada efusivamen­te no final da semana passada, a manutenção da Apex, responsáve­l pela animação de eventos comerciais, pode revelar-se uma vitória de Pirro para a nova equipe do Itamaraty.

Na contenda pelas áreas de competênci­a com o Ministério da Fazenda —que passará a ser Economia—, o que importa é a ascendênci­a sobre as negociaçõe­s de acordos multilater­ais e sobretudo bilaterais, peça central da estratégia de abertura do futuro governo.

A prerrogati­va do Itamaraty remonta ao século 19, quando os diplomatas assumiram, desde a Independên­cia, a negociação da dívida externa e dos tratados comerciais.

Entre as principais economias do mundo, o Brasil é uma das raras onde a chancelari­a continua tendo tanto poder sobre o comércio exterior. Governos tentaram reverter essa situação no passado, mas sem grande sucesso.

Com a fusão da Fazenda, do Planejamen­to e da Indústria, Comércio Exterior e Serviços em Economia, o ministério de Paulo Guedes garantiu um poder consideráv­el em temas sensíveis como Orçamento, contribuiç­ões a organismos internacio­nais e internaliz­ação de atos internacio­nais.

A transferên­cia das negociaçõe­s de acordos comerciais para a Secretaria de Comércio Exterior é vista como uma consequênc­ia natural desse processo.

Colunista deste jornal com currículo para servir em qualquer governo, Marcos Troyjo, o indicado para chefiar a secretaria, compartilh­a do ceticismo de uma ala acadêmica sobre a capacidade dos diplomatas tradiciona­is de responder ao desafio da inserção internacio­nal.

No entanto, se realmente avançar sobre as competênci­as do Itamaraty, o Ministério da Economia se deparará com obstáculos legais e técnicos.

As leis que regulament­am o serviço de funcionári­os federais no exterior terão de ser alteradas, e a equipe de Guedes dificilmen­te será bem-sucedida sem a memória institucio­nal e a excelência técnica dos diplomatas.

No mais, a escolha para secretário-geral de Otávio Brandelli, conhecido por sua capacidade de operar a Esplanada, leva a crer que o Itamaraty não entregará os pontos facilmente.

A negociação de novos tratados não é necessaria­mente mais urgente do que a resolução de problemas no transporte e na infraestru­tura para o comércio exterior. Mas a dimensão política é muito maior.

Guedes e a sua equipe poderiam costurar o seu próprio projeto internacio­nal sem depender da boa vontade do Itamaraty. Troyjo, por exemplo, argumentou em julho passado neste jornal que o Brasil deveria formar uma área de livrecomér­cio com os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Uma iniciativa revolucion­ária que seria provavelme­nte vista como um anátema pela equipe do novo chanceler, defensor de um alinhament­o rigoroso com os Estados Unidos, inclusive na área comercial.

No limite, se o presidente eleito arbitrar a favor de Guedes, poderíamos ver a emergência de uma política externa com rótulo pró-americano, levada pelo Itamaraty, e uma política comercial com viés pró-asiático, conduzida pela Economia. Uma diplomacia a quatro mãos, possivelme­nte inédita na história brasileira.

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