ilustrada
Nas bancas desde 1958, com 21 mil edições publicadas, a Ilustrada, 60, traz histórias do maior caderno de cultura e entretenimento do país, com documentários, bastidores, páginas históricas, fotos e uma cronologia das artes nas últimas seis décadas
No dia 1º de setembro de 1977, o jornalista Lourenço Diaféria escreveu em sua crônica diária, na última página da Ilustrada, um texto que citava duque de Caxias, por acaso patrono do Exército brasileiro.
A crônica enaltecia um sargento que havia pulado em um poço de ariranhas (espécie de lontra carnívora do Pantanal, que mede até 1,80 m) no zoológico de Brasília para resgatar um garoto de 14 anos que havia caído no viveiro. O sargento morreu dilacerado por mais de cem dentadas, o menino foi salvo.
“Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.” E mais adiante: “O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue no ar aqui na praça Princesa Isabel oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal.”
A então editora da Ilustrada, Helô Machado, é filha de militar e sabia que Caxias representava mais do que uma estátua para o Exército brasileiro. “Fui contra a publicação, mas o Diaféria foi irredutível”, diz. Ela levou o caso ao diretor de Redação, Cláudio Abramo, que teria lido a peça e a liberado.
No dia 10 de setembro, o jornal publicou em sua Primeira Página: “Jornalista da Folha acusado de violar Lei da Segurança Nacional”. Às 17h do dia 15, Diaféria foi preso em casa, o que também foi noticiado na Primeira Página. No mesmo dia, sua coluna saiu em branco na Ilustrada.
“A decisão foi recebida como uma afronta pelas altas patentes”, escreve o jornalista Marcos Augusto Gonçalves no livro “Pós-Tudo - 5o Anos de Cultura na Ilustrada” (2008, Publifolha, esgotado). “O chefe da Casa Militar, general Hugo Abreu, avisou em telefonema a Octavio Frias de Oliveira [1912-2007] que o jornal seria fechado se a coluna voltasse a ser publicada em branco.”
Morto em 1987, Abramo deu depoimentos nos quais disse que Hugo Abreu pedira sua cabeça. Faria parte de um acordo com Geisel em afastar diretores de Redação de esquerda de diversos jornais em troca da manutenção da abertura lenta e gradual do país.
Abramo foi afastado da função que exercia havia dez anos e o comando foi passado a Boris Casoy, mais identificado com a direita.
Casoy, que cuidava do Painel, a coluna de política, foi o editor responsável até 1984, quando Otavio Frias Filho (1957-2018) assumiria a Folha. Os primeiros dez anos da Ilustrada, de 1958 a 1967, não são os mais memoráveis. O caderno publicava praticamente apenas o que traduzia de agências internacionais. Notícias de Hollywood, do jetset internacional, às vezes alguma coisa produzida aqui, como em sua estreia, em 10 de dezembro de 1958: “Uma pergunta (‘Você gostaria que seus filhos seguissem a mesma carreira que a sua?’) e muitas (diferentes) respostas”. As personalidades que responderem eram tão díspares como a escritora Lygia Fagundes Telles, o goleiro Gilmar (que havia ido à Copa do Mundo na Suécia), um empresário, um juiz e uma professora de balé.
A Ilustrada foi criada para dar espaço a anúncios. O jornal precisava crescer em número de páginas, e um novo caderno de entretenimento foi a saída. Não havia igual nos maiores jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. O que havia eram cadernos semanais levados bem mais a sério, com discussões literárias, resenhas e ensaios: o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo e o Suplemento Domi- nical do Jornal do Brasil. Sete meses após o lançamento da Ilustrada, porém, o JB também lançava seu caderno diário de cultura, o Caderno B.
Cinco anos depois disso, em 1962, Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho se tornavam os donos da Folha. Parte de suas mudanças foi justamente trazer, em 1964, o jornalista Cláudio Abramo para o jornal. Abramo assumiria a Direção de Redação em 1967 e começaria grandes mudanças.
O que fazer com a Ilustrada naquele momento? Diagnóstico: o Estado de S. Paulo não possui um igual, mas o caderno é um balaio de gatos, muitos assuntos pouco ordenados. E estamos em 1967, auge da tropicália, dos Beatles e da cultura pop. Prognóstico: elevar o status da Ilustrada, com críticos e repórteres melhores. O editor, desde 1958, era Moacyr Corrêa, que foi mantido até 1971, e ajudou a instalar as mudanças propostas por Abramo.
Dessa forma, o caderno foi se tornando mais ligado à cultura e menos às variedades. Mesmo assim, com percalços. A Ilustrada não noticiou a morte do poeta americano T.S. Eliot porque ninguém no caderno jamais havia ouvido falar nele, conta Gonçalves em seu livro. Jornalistas leram o telex com a morte, mas pensaram se tratar do policial Eliot Ness (dos Intocáveis, morto oito anos antes) e, como tal, acharam que a notícia não lhes dizia respeito. Em 1970, após tais transformações, a Ilustrada publicou a seguinte reportagem-alerta para os pais: “Droga nos EUA: nova religião para milhares de adolescentes”, que descrevia problemas enfrentados pelo governo americano com o uso da maconha, do LSD e da heroína pela juventude americana. Para ilustrar a matéria, o jornal usou uma fotografia de Bob Dylan com a seguinte legenda: “Dylan, cantor dos prazeres da droga, das maravilhas artificiais inacessíveis ao resto dos homens”.
No Brasil, o caderno começou a reparar melhor em movimentos culturais menos mainstream, cobrindo, por exemplo, o lançamento (e as discussões a seguir) de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, no Rio (maio de 1967), ou a estreia de “O Rei da Vela”, com direção de Zé Celso, em São Paulo (setembro de 1967).
Os anos 1970 veriam pelo menos dois editores à frente do caderno: Jefferson del Rios e Helô Machado. Os leitores veriam muito rock e cinema, tanto nacional quanto estrangeiro. Foi a época de Raul Seixas, Secos & Molhados, Rita Lee, Caetano e Gil. Lá fora, muito Rolling Stones, Pink Floyd e até o punk andou aparecendo no caderno. Nas telas, tivemos de “O Poderoso Chefão” a “Guerra nas Estrelas”, de “Dona Flor e seus Dois Maridos” a “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”.
Em 1977, a contratação do ex-Pasquim Tarso de Castro deu vazão ao nascimento do Folhetim, um caderno semanal filhote da Ilustrada que, no molde dos suplementos dominicais dos concorrentes, trouxe discussões literárias e intelectuais à Folha.
O primeiro número apareceu em 23 de janeiro, com Tom Jobim na capa, em uma entrevista feita pelo próprio Tarso.
“Era um passo adiante”, acredita Boris Casoy. “Entrava no futuro, nas tendências da sociedade. Folhetim não era ousado; era atrevido.”
Nos anos 1980, o suplemento faria uma edição inteiramente falsa, escrita por intelectuais reais e fictícios sobre intelectuais igualmente inventados. A dica para o leitor estava na manchete do caderno: “A cultura como esquecimento e falsifica- ção”. Dias depois, uma reportagem na Ilustrada contava a brincadeira, entrevistando leitores célebres como o escritor Marcos Rey e o médico Pedro Nava, citado (sem ser consultado) num dos textos como amigo de um tal poeta Agrícola de Almeida.
Não foi o suficiente para segurar um protesto do Sindicato dos Jornalistas, que repreendeu a Folha ao lembrála que o jornalismo deveria estar comprometido com a verdade. Apesar de vir a assumir a Direção de Redação apenas em 1984, Otavio Frias Filho já vinha se preparando para liderar o jornal desde meados dos anos 1970. Seu interesse por cultura o fez olhar para a Ilustrada muito cedo. Portanto, não causa estranheza que Otavio, que tinha 24 anos em 1981, tenha apostado num rapaz de 26 anos, indicação de Cláudio Abramo, para editar o caderno.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal Lourenço Diaféria, em crônica publicada na Ilustrada em 1977, que resultou em sua prisão
Além da pouca idade, Caio Túlio Costa trazia outra coisa nova: via a cultura como um mercado. Sabia que o leitor queria novidades sobre os livros saindo naquele mês, os filmes estreando naquela semana, os discos lançados naquele dia. Ele vinha do pequeno jornal Leia Livros, ligado à editora Brasiliense.
“O Leia estava literalmente pautado pelo mercado editorial. Era um jornal da Brasiliense e se preocupava com os lançamentos, os de maior aceitação para o público e os mais importantes do ponto de vista intelectual. Eu dava os lançamentos quando eles aconteciam. Já a Ilustrada falava de um disco meses depois de ter saído”, lembra o editor.
A reorientação do caderno atingiu os repórteres, que, aos poucos, foram sendo substituídos por uma geração mais nova. Parte dessa renovação também se deveu à implantação de computadores no lugar das antigas máquinas de escrever embutidas nas mesas de aço, que por décadas deram cara à Redação.
A chegada de Caio Túlio também inaugurou um novo estilo de direção no caderno. Até então, em 23 anos, a Ilustrada havia tido três, talvez quatro, editores. A partir de agora, os chefes durariam apenas um ou dois anos no cargo, resultado de uma rotina cada vez mais exigente e massacrante.
Os editores se tornavam repórteres especiais, iam para outras áreas ou eram promovidos. Foi o caso de Caio Túlio Costa, que, após exato um ano à frente da Ilustrada, se tornaria um dos secretários de Redação da Folha.
O editor seguinte foi Matinas Suzuki, que se mostraria uma usina editorial. Foi editor duas vezes, sendo sucedido em ambas as vezes por Marcos Augusto Gonçalves. Como Caio Túlio, seria promovido e acabaria como editor-executivo na virada dos anos 1990 para os 2000, um novo cargo entre os secretários e o diretor de Redação, Otavio Frias Filho.
“Pela pouca idade, nos apelidaram de ‘Menudos do jornalismo’”, conta Gonçalves.
Matinas diz que “a Ilustrada não criou grandes novidades, mas se abriu para canalizar as coisas novas”. E cita, entre elas: o rock dos anos 1980, o cinema de vanguarda, a arte multimídia, tendências existenciais e comportamentais, o novo teatro, o pós-punk, os roqueiros dark, os yuppies, o Sesc Pompeia, a moda paulistana, a gastronomia, a Mostra de Cinema e afins.
Mas ele também causava: sua equipe fez logotipos para a Ilustrada em japonês ou imitando a Coca-Cola, inventou neologismos que caíam na boca do paulistano e criou polêmicas que atiçaram a cidade.
Como essa daqui, em 1983: criticado por Paulo Francis por ter parecido subserviente ao entrevistar Mick Jagger num programa de TV, Caetano Veloso respondeu que o jornalista não passava de uma “bicha amarga”, em uma reportagem de Miguel de Almeida, na capa da Ilustrada.
A “bicha amarga” respondeu: “É puro Brasil. Ao argumento crítico, o insulto pessoal. Mas o insulto é ao próprio Caetano. Afinal, o que ele quer dizer é que sexualmente sou igual a ele, e usa isso como insulto”. Dois dias depois, Ruy Castro colocou gasolina fazendo a seguinte pergunta a dezenas de personalidade: “Quem faz mais sua cabeça? Paulo Francis ou Caetano Veloso?”. “É a polêmica do século. Não se fala em outra coisa”, escreveu Ruy.
Casos assim transformaram o caderno num dos carros-chefes da Folha. “A Ilus- trada foi galgando esse status e se tornou uma parte indispensável do jornal”, afirma Casoy. Como já disse Gerald Thomas, “a Ilustrada era a internet dos anos 1980”. É verdade que a Ilustrada surfava numa onda boa. Além das transformações citadas por Matinas, Otavio Frias Filho assumira em maio de 1984 e rapidamente transformava o jornal. O apoio à campanha das Diretas Já havia chamado a atenção nacional para a Folha, até então um jornal local.
Otavio ia além: instituiu o Manual de Redação, criando regras de texto para seus jornalistas e lançou o Projeto Editorial, um texto que estabelecia o jornal como crítico, apartidário, pluralista e independente. Outros mecanismos foram criados, em tentativas de melhorar a produção do jornal.
Um deles era o Programa de Qualidade, que cobrava melhorias diariamente dos repórteres exibindo exemplos negativos e positivos em um mural na redação. Outra forma de cobrança era a quantidade de linhas produzidas por cada repórter a cada mês, contabilizada e comparada com os colegas. Os editores deveriam ainda dar notas periódicas a seus comandados, que precisavam também se autoavaliar. Três “erramos” no período de dois ou três meses era caso de demissão.
Finalmente, em 1989, foi instituído o cargo de ombudsman, que deveria defender o leitor em casos contra a Redação. Sua função mais temida, porém, era a crítica diária que fazia da própria Folha e que circulava internamente. O primeiro, da Folha e do país, foi Caio Túlio Costa.
Todas essas mudanças levaram o jornal para um caminho admirado. Em 16 de setembro de 1985, a Veja São Paulo dava na capa de seu segundo número a seguinte manchete: “Como a Folha virou o jornal nº 1 da cidade”.
Em 1986, após dois anos como diretor de Redação, Otavio Frias Filho já havia feito seu jornal ultrapassar em tiragem o Estado de S. Paulo e o carioca O Globo, e a Folha havia se tornado o jornal mais vendido do Brasil. Em 1988, o faturamento da empresa havia dobrado. O caso mais marcante da cultura em 1986 foi o do filme “Je Vous Salue, Marie”, de Godard. A obra, rechaçada pela Igreja (o próprio papa João Paulo 2º se manifestou), conta a história de uma garota que engravida nos dias atuais sem ter feito sexo, como aconteceu com Maria, mãe de Jesus.
Em fevereiro de 1986, Sarney censurou o filme. A Ilustrada fez uma série de matérias e chegou a exibir a obra em videocassete no auditório do jornal. Só depois questionou juristas, em uma reportagem, se o que havia feito era contra a lei.
O jornal também reproduziu o roteiro da obra. Em 1º de março, o auge da provocação: em uma página dupla, publicou uma fotonovela com fotos contando a história timtim por tim-tim.
A cultura estava com tudo. Um mês depois, o Estado de S. Paulo finalmente começou a publicar seu Caderno 2.
O lançamento, inclusive, foi noticiado pela Ilustrada em uma capa clássica, na qual o logotipo do caderno mimetizava o da Coca-Cola, brincando com o fato de que o rival era a cópia, como costuma ser lembrada a Pepsi.
Nesse contexto, a editora seguinte a Marcos Augusto Gonçalves, Márion Strecker, começou a expandir o caderno. Foram criadas novas páginas a partir de seções que faziam sucesso, como Livros ou Comida, e cadernos especiais eram publicados em praticamente todo grande evento que aportava na cidade: Free Jazz, Mostra de Cinema, Bienal de São Paulo, entre outros.
“A gente chegava a fazer cadernos de 36 páginas naquele momento. Só a Ilustrada tinha 36 páginas. É claro que a equipe foi crescendo e eu tive a oportunidade de contratar muita gente”, conta Strecker.
Paulo Francis, com sua coluna Diário da Corte, provocava amor e ódio. Era uma das maiores atrações do jornal e foi ganhando uma página só dele.
Nos quadrinhos, Angeli, Glauco (1957-2010), Laerte e Fernando Gonsales encantavam uma geração com Rê Bordosa, Geraldão, Piratas do Tietê e Níquel Náusea. Eles abriram caminho para Adão Iturrusgarai e Caco Galhardo, entre muitos outros quadrinistas que brilharam nas páginas do caderno.
No caso de Glauco, acontecia uma coisa curiosa, lembra o editor de arte Jair de Oliveira, que trabalhou no caderno por 39 anos, entre 1974 e 2013: “Ele mandava o Geraldão sempre com o bilau de fora. O Otavio [Frias Filho] via e mandava a gente colocar uma tarja em cima. No dia seguinte, vinha o bilau de fora de novo. Até que o Otavio cansou e deixou sair sem tarja. Aí o Glauco começou a mudar de personagem. Não tinha mais graça”, diverte-se Jair.
“Mas o pinto para fora era um dos detalhes escandalosos da tira. Ele fica se picando com três ou quatro seringas, fumando, bebendo, olhando a mãe no banheiro. Era uma depravação total [risos]. A tira do Glauco foi fundadora nesse sentido. Difícil pensar em um outro jornal que publicasse esse tipo de coisa”, comenta Laerte.
Joyce Pascovitch, contratada em 1986, inventava uma nova forma de colunismo social, voltada a furos e à política.
“Quando Caio Túlio e Matinas vieram me convidar, eu aceitei, né? Quem vai dizer não à Folha de S.Paulo? Mas eu não quero meu nome escrito. ‘Mas como não vai ter nome na coluna?’ Eu falei não, põe o nome Coluna. ‘Não, tem que ter seu nome.’ Eu pedi para pôr lá embaixo, pequenininho.” Não foi atendida.
José Simão começava a escrever sobre televisão, após uma passagem relâmpago como redator: “No meu primeiro fechamento de edição, pediram que eu cuidasse de metade de uma página e meu colega da outra metade. Só que nós dois fechamos a mesma metade! Rarará”.
Críticos de música como Luis Antônio Giron e Pepe Escobar causavam celeumas. O primeiro destruiu uma pianista veterana com uma crítica tão ferina (“A sombra de uma grande pianista”), que foi objeto de abaixo-assinado exigindo sua demissão.
O outro atraiu uma turma de roqueiros revoltados à Redação, que terminou numa tentativa do vocalista do Ira! em arrebentar sua cara —fato devidamente noticiado pela Ilustrada, com três fotos documentando o momento. Na virada da década, o caderno ganhou seu único Prêmio Esso, sob a batuta do editor Mario César Carvalho. Tratou-se de uma série de reportagens de Cristina Grillo e Wilson Silveira, que vasculharam os recémabertos arquivos da Censura Federal com cerca de 90 mil documentos.
Agora o Francis me desrespeitou. Foi desonesto, mau-caráter. É uma bicha amarga. Essas bonecas travadas são danadinhas Caetano Veloso, sobre Paulo Francis, na capa da Ilustrada de 5 de maio de 1983
Ao contrário do que esperavam, não encontraram apenas obras de artistas intelectualizados, mas muita coisa de cantores bregas e populares.
O jornal dos anos 1980 e 1990 tinha um enorme poder, muito maior que hoje. Sair em suas páginas podia determinar o sucesso de um evento ou obra.
Márion Strecker lembra que artistas e agitadores culturais descobriam o telefone de sua casa e ligavam no sábado ou domingo à noite para pedir espaço no caderno.
Já o editor Jorge Caldeira não resistiu à pressão em fins de 1991. Semanas após tomar posse, foi atrás da namorada em Nova York. Ele diz ter combinado previamente com Frias Filho, mas, como não voltava, recebeu um telefonema do chefe.
“Eu estava com dois ingressos na mão para ver o Pavarotti. Conversamos sobre a entrega necessária para ser editor da Ilustrada, e realmente eu não tinha esse engajamento”, lembra Caldeira, hoje escritor. De comum acordo, entregou os pontos. Durou 40 dias no cargo. Erika Palomino entrou na Folha em 1988, mas foi em 1992 que começou a fazer história no jornalismo.
“Descobri a noite de São Paulo e comecei a fazer matérias do que eu via. Até que um dia o [repórter e crítico de teatro] Nelson de Sá sugeriu à editora Maria Ercilia que eu fizesse uma coluna semanal inspirada em uma do jornal Village Voice, de Nova York.”
A coluna Noite Ilustrada estreou chocando muita gente, fora e dentro do jornal. Usando termos como hype, babado e uó e fotos de câmeras descartáveis feitas pelos próprios frequentadores das casas noturnas, recebeu um peteleco de cara do ombudsman: “iniciativa coroada de amadorismo” e que não iria durar. Durou 13 anos.
“A pauta da Erika era transgressiva e é transgressiva até hoje”, afirma Maria Ercilia, responsável por aguentar as broncas. Palomino considera que nunca foi totalmente compreendida pelo jornal. Mas alguns a entendiam.
O editor seguinte, Alcino Leite Neto, expandiu sua coluna para nada menos que três páginas semanais. “Eu entrei na Folha com um único objetivo: ser editor da Ilustrada”, revela Alcino, que chefiaria diversas áreas no jornal.
Bia Abramo pegou a era dos megashows no Brasil. Houve Hollywood Rock, Free Jazz e as lendárias passagens de Madonna e Michael Jackson pelo país. E curtia férias quando morreu Tom Jobim. “Estava tomando cerveja na praia e ele em todos os canais de TV. Morreu o homem! Ainda bem que tinha deixado alguma coisa pronta.”
Zeca Camargo, que se tornaria apresentador da Globo, já havia sido pauteiro do caderno e virou chefe em 1995. “É inesquecível o primeiro texto com seu nome e, embaixo, ver escrito ‘editor da Ilustrada’.” No seu caso, foi no dia seguinte em que assumiu, 11 de abril de 1995, uma reportagem sobre uma exposição no museu Whitney, em Nova York.
Depois, Luiz Caversan, espécie de coringa da Redação, ocupou a função por sete meses. “A Ilustrada tinha muitos problemas de atrasar o fechamento. Então tinha um momento que tinha que ser na base da porrada”, conta.
“Eu falava ‘olha, se você não fechar esse texto em dois minutos, eu vou desligar o seu computador’, porque a gente precisava fechar ao meio-dia e faltavam dois minutos para o meio-dia. ‘Mas falta só uma linha, blablablá...’. E eu: ‘Amigão, tem uma questão básica: se a sua matéria não for para o jornal, ninguém vai ler’.”
Caversan afirma que não chegou a desligar a máquina de ninguém na Ilustrada. O que ele costumava mesmo fazer era chacoalhar o computador do “atrasildo” para demonstrar que não estava para brincadeira. Para desespero dos chips.
“Naquela época, o equipamento era muito ruim. As máquinas eram paraguaias. Quando parava o sistema, aparecia a seguinte mensagem: ‘No anda bien’.”
Sérgio Dávila, editor-executivo da Folha desde 2010, veio interromper a era dos mandatos curtos, de um a um ano e meio. Ficou no cargo de 1996 a 2000, sendo o primeiro editor, aliás, a fazer uma Ilustrada de aniversário, nos 40 anos do caderno, em 1998.
Como todo editor, imprimiu nas páginas do caderno um misto de notícias culturais, serviço ao leitor e também um pouco de seus próprios gostos e preferências, como no fim da série “Seinfeld”, a sua preferida.
“Demos uma espécie de contagem regressiva para o capítulo final. Todo dia tinha uma reportagem. Chegou a ponto de o diretor de programação da Globo escrever uma carta ao Painel do Leitor reclamando: ‘A Ilustrada só pensa no Seinfeld? Ninguém mais aguenta o Seinfeld’ [risos]”, lembra Sérgio Dávila.
Para o editor, “é importante que o leitor, todos os dias, feche a Ilustrada e pense ‘eu fui impactado, surpreendido, achei inusitado algum aspecto do caderno’”.
Internamente, foi um momento de grande renovação da equipe. A geração dos repórteres que vinha desde os anos 1980 foi sendo substituída pela seguinte. Vários dos redatores e repórteres contratados por Dávila se tornariam os editores da Ilustrada no século 21.
O caderno surfou na onda do britpop, houve o filmemarco “A Bruxa de Blair”, o início da onda dos seriados americanos, o renascimento do cinema nacional e o aparecimento de uma nova música brasileira, com Marisa Monte, Skank, Chico Science e Racionais MC’s, entre outros.
Como escreve Marcos Augusto Gonçalves em “Pós-Tudo”, “Dávila decidiu investir no tripé pop, reportagem e antecipação de tendências”.
“A Ilustrada de Dávila, como a de Márion, aproveitava a boa maré e crescia. Além de dezenas de colaboradores, cerca de 35 pessoas trabalhavam na Redação; às sextas, eram publicados dois cadernos; eventos como megashows, bienais, Mostra de Cinema e outros mereciam edições especiais.”
“Lembro com carinho do caderno que fizemos quando morreu Renato Russo, com a foto em que ele está com rosas num cemitério”, lembra.