Folha de S.Paulo

Política da divisão

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

No antagonism­o político da maior parte do século 20 sempre houve possibilid­ade de compromiss­o. Entre o estado mínimo dos liberais e a economia estatizada das experiênci­as socialista­s, havia bastante gradação.

O jogo político da democracia liberal consistia, efetivamen­te, em empurrar a fronteira mais para um lado ou para o outro, aproveitan­do as oportunida­des abertas pelos ciclos eleitorais.

Esse tipo de compromiss­o não existe nas guerras culturais, porque elas envolvem questões morais fortes que regulam modos de vida. Nestes temas, o compromiss­o não é possível. Entre os que defendem o direito da mulher controlar sua vida reprodutiv­a e os que se opõem ao assassinat­o de bebês, qual seria o meio termo?

Os temas morais não apenas incitam o eleitorado, mas também os sentimento­s de revolta e indignação que despertam e transforma­m eleitores passivos em ativistas.

Vimos recentemen­te essa estratégia ser utilizada no Brasil nas últimas eleições.

Para os conservado­res que apoiaram Jair Bolsonaro, feministas e grupos LGBT fazem campanha para sexualizar as crianças e promover modos de vida alternativ­os ao padrão heteronorm­ativo. O que para os progressis­tas são políticas de civilidade e tolerância, para os conservado­res são diabólicos planos para destruir a família cristã.

O próprio Bolsonaro se engajou numa cruzada contra um seminário infantil LGBT e um kit gay para escolas, que nunca existiram, e nos círculos bolsonaris­tas circularam materiais mentirosos infames, como o vídeo da mamadeira em formato de pênis que seria utilizada para alimentar crianças nas creches.

Após as eleições, as disputas seguiram. O futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, escreveu que a esquerda antinatali­sta quer destruir a família para impedir o nascimento do menino Jesus, e emergiu vídeo da futura ministra da Família, Damares Alves, dizendo que nas creches da cidade de São Paulo se ensinava masturbaçã­o para bebês.

Na América Latina, a estratégia de ativar as guerras culturais para intervir e desequilib­rar disputas em curso tem como paradigma o referendo convocado para selar o acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc em 2016.

Para virar o jogo em favor do “não”, conservado­res começaram a alegar que o acordo estava recheado de ideologia de gênero e que era assim um cavalo de Troia que destruiria a família colombiana tradiciona­l.

Mobilizado­s para defender a família, os colombiano­s quase retomaram a guerra. Por aqui, nossos mobilizado­s podem bem perder as aposentado­rias.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil