Novelas escritas por autores que se opunham à ditadura eram mutiladas
Diretor-geral da TV Globo na época do AI-5, Boni diz que Roberto Marinho pediu a ele que decreto fosse noticiado ‘discretamente’
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, dali a alguns anos ganharia o apelido de “o todo poderoso da Globo”.
Ocupava o posto de diretorgeral de produção e programação da emissora naquele 13 de dezembro de 1968, quando a ditadura militar decretou o Ato Institucional número 5, que concedeu ao presidente da República um poder quase irrestrito para, entre outras medidas, fechar o Congresso Nacional.
O executivo logo recebeu uma ligação de Roberto Marinho com as instruções de como o decreto deveria ser noticiado: discretamente.
Ex-integrante do Partido Comunista, pelo qual tivera breve passagem, Boni àquela altura, conforme conta à Folha, já estava concentrado no projeto de fazer da Globo uma rede nacional de televisão.
Atualmente, aos 83 anos, duas décadas após deixar a direção da empresa, comanda de perto uma de suas afiliadas, a TV Vanguarda, no Vale do Paraíba, da qual é proprietário.
Nesta entrevista, Boni relembra como a notícia do AI5 foi recebida na emissora que se tornaria, durante a ditadura, a maior do país, e o acirramento da censura e da perseguição a autores e artistas.
Quando o AI-5 foi decretado, como estava a sua vida pessoal e profissional? Estava com 33 anos, casado, tinha um casal de filhos e morávamos em Ipanema. Havia iniciado na Globo em 1957, vindo da TV Tupi, e me dedicava ao trabalho. Era diretor-geral de produção e programação. Fazia parte do comitê executivo formado por quatro profissionais: além de mim, Walter Clark [diretor-geral], Joe Wallach [financeiro] e Ulisses Arce [comercial]. Nossa preocupação era a criação de uma nova rede de televisão que fosse nacional e a reformulação da TV brasileira como um todo.
A telenovela “Beto Rockfeller”, da TV Tupi, estava no segundo mês de exibição e incomodava a concorrência, sendo considerada inovadora por trocar os roteiros estrangeiros, comuns nos primeiros anos da TV brasileira, por temas nacionais, com linguagem do cotidiano. A Globo reagiu, e o movimento deu início a uma forte teledramaturgia brasileira, com importante papel no debate político.
Que lembranças tem desse
momento? [A cubana] Glória Magadan [autora e diretora de telenovelas com carreira em Miami e na Venezuela] havia sido contratada pelo Walter Clark e estava lá na Globo quando eu cheguei. Gozava de diversos privilégios contratuais e era autoritária e conservadora. Eu descobri uma brecha no contrato e a demiti.
Coloquei o Daniel Filho no cargo e contratamos Janete Clair, Dias Gomes e outros autores. No ano seguinte, seria lançada “Véu de Noiva”, de Janete Clair, para concorrer com o final de “Beto Rockefeller”, e conseguimos ganhar da pioneira novela de Bráulio Pedroso [roteiro] e Cassiano Gabus Mendes [argumento].
O sr. me contou ter abandonado o Partido Comunista, após breve passagem, por discordar da forma como alguns membros queriam ganhar comissão com a compra de anúncios em rádios e TVs. Quando o AI-5 foi decretado e a perseguição a opositores do governo aumentou, o sr. tinha ainda alguma ligação com a militância comunista? Em 1963, o [jornalista e produtor] Tulio de Lemos, no Teatro de Arena, me convidou para participar dos movimentos de esquerda e me apresentou a um grupo de dirigentes. Foi uma passagem curta. Quando houve a exposição da Iugoslávia no Brasil, me pediram para colocar uma margem de lucro nos anúncios de rádio, TV e jornais para arrecadar fundos para uma determinada célula [espécie de departamento do Partido Comunista montado clandestinamente em empresas ou outras organizações]. Não concordei e peguei o meu boné.
Em 1968, eu só me dedicava à empreitada de mudar a TV, um sonho antigo meu e do Walter Clark.
Onde o sr. estava quando o AI5 foi anunciado? Eu estava na emissora. O doutor Roberto [Marinho, dono da Globo] me ligou dando instruções para que o comunicado entrasse no ar discretamente. Walter Clark não estava. Eu e o Armando Nogueira [diretor de jornalismo] falamos com doutor Roberto, que, antes desse momento, achava que a revolução terminaria rapidamente. Caiu na real e viu que a partir daquele instante a ditadura estava implantada. Lamentou-se. Walter Clark contou em sua autobiografia que, na noite do AI-5, voltava para casa quando decidiu parar em um bar e ligar para a sua secretária, a fim de saber a audiência do dia. Ela lhe avisou que a Globo fora informada de que ele seria preso quando chegasse em casa. Clark então se escondeu, até que Edgardo Manoel Erichsen e Paiva Chaves, os militares contratados pela Globo para fazer a ponte com o governo, conseguiram contornar a situação. Lembra-se desse episódio? Lembro. Os militares não gostaram de como foi dada a notícia do AI-5 e ameaçaram prender o Walter, que nem estava lá. Ele teve que se esconder e foi necessário que o Paiva e o Erichsen resolvessem a situação.
Algo semelhante aconteceu com o sr.? O que mudou na
sua vida após o AI-5? Comigo foi aberto um processo no Dops [Departamento de Ordem Política e Social] alegando que eu não cumpria as ordem que vinham da censura e debochava delas. Fui chamado para explicações e terminou por aí. Voltei a ser chamado durante o FIC, no episódio Erlon Chaves, sem maiores consequências [no 5º Festival Internacional da Canção, em 1970, na Globo, o músico irritou os militares com performance na qual era abanado por homens e beijado por mulheres; foi proibido de trabalhar por 30 dias].
A luta contra a censura era diária, como diárias eram as ameaças. Autores e artistas eram também ameaçados. Mantive os empregos de todo o pessoal da esquerda com apoio do doutor Roberto.
Novelas e programas foram mutilados quando eram escritos ou produzidos por gente que se opunha à ditadura, mesmo quando não havia nada a censurar. “Roque Santeiro” [novela de Dias Gomes] foi proibida sem nenhum motivo.
Com o tempo, conseguimos negociar melhor por meio do Conselho Superior de Censura [instituído em 1979 para rever decisões da censura], onde nos defendia o Ricardo Cravo Albin, e graças à compreensão de um grupo mais moderado.
Uma medida extrema como o AI-5 é algo enterrado no passado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim novamente? Não há clima para isso, mas, em um país à deriva como o nosso, tudo pode acontecer.
“O doutor Roberto [Marinho, dono da Globo] me ligou dando instruções para que o comunicado entrasse no ar discretamente [...] Antes desse momento, [ele]achava que a revolução terminaria rapidamente. Caiu na real e viu que a partir daquele instante a ditadura estava implantada. Lamentou-se A luta contra a censura era diária, como diárias eram as ameaças Mantive os empregos de todo o pessoal da esquerda com apoio do doutor Roberto Boni diretor-geral da TV Globo durante o AI-5