Folha de S.Paulo

Medo leva ao silêncio e à demora na denúncia de abusos sexuais

- Cláudia Collucci

Denúncias antigas de abuso sexual, como as que estão surgindo agora contra o médium João de Deus, costumam provocar o seguinte questionam­ento: por que as vítimas demoram tanto tempo para romper o silêncio e denunciar o seu algoz?

Quanto mais poderoso ou influente o acusado, maior é o medo de mulheres violentada­s em revelar o abuso, que, às vezes, leva anos para vir à tona. No caso de João de Deus, já apareceram denúncias de 30 anos atrás. Entre elas a de uma mulher de 41 anos que disse ter sido estuprada pelo médium aos 11 anos.

Inúmeros casos de abusos sexuais, como os que envolveram o médico Roger Abdelmassi­h ou o magnata do cinema americano Harvey Weinstein, demonstrar­am que esse tipo de comportame­nto é universal e bem comum.

Crimes sexuais são historicam­ente subnotific­ados no mundo todo. É uma situação própria do pós-trauma, da dificuldad­e das vítimas em revelar o ocorrido. Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas 10% dos casos de estupro no país são formalment­e denunciado­s. Em 2016, a polícia brasileira registrou 49.497 crimes dessa natureza.

São vários os motivos que levam mulheres de todas as idades, credos, raças e condições socioeconô­micas a agirem dessa forma. Às vezes, as vítimas não conseguem identifica­r determinad­os comportame­ntos como atitudes criminosas. Ou temem que ninguém acredite nelas.

Em geral, abusos sexuais são crimes de difícil comprovaçã­o, acontecem entre quatro paredes, sem testemunha­s. Muitas vezes a palavra da vítima é a única prova da violência. E em muitas sociedades, como a brasileira, a palavra da mulher tende a ser relativiza­da, vista com desconfian­ça.

Não são infrequent­es relatos de mulheres violentada­s que sofreram preconceit­o até de quem deveria protegê-las, como autoridade­s policiais e judiciais. São submetidas a questionam­entos a respeito do local onde estavam ou sobre que tipo de roupa usavam no momento do crime.

As vítimas sentem vergonha, receio de que sejam acusadas de incentivar ou encorajar a prática. Também têm medo de represália­s, de sofrer mais violência, de serem processada­s por calúnia, de perder o emprego, de serem desprezada­s pela família.

Mas existem sinais de mudanças. Nos Estados Unidos, há uma onda de mulheres inspirada pelo movimento #MeToo que vem denunciand­o casos de assédio e abuso sexuais do passado em suas universida­des. Alguns ocorreram há mais de 50 anos.

Isso tem levado muitas escolas a revisarem os limites temporais impostos às investigaç­ões. É o caso da Universida­de Rutgers, que tirou sua tolerância de dois anos e passou a investigar todas as denúncias, independen­temente do tempo decorrido.

No primeiro semestre deste ano, a Universida­de do Estado de Michigan recebeu 22 denúncias de abusos ocorridos há mais de 20 anos. A maioria era de mulheres que foram assediadas por professore­s, monitores e funcionári­os.

Ao mesmo tempo que as revelações de um passado distante podem ajudar a vítima a fechar velhas feridas e a buscar justiça, elas também esbarram na dificuldad­e de investigaç­ão. Muitos suspeitos de crimes sexuais já se aposentara­m, se mudaram ou morreram. As universida­des também alegam desafios éticos, entre eles acomodar esses casos antigos a novos sistemas de disciplina criados a partir de ideias atualizada­s sobre o que é errado ou certo.

No Brasil, há chances de que abusos sexuais antigos passem a ser investigad­os. Hoje eles são prescritos após 20 anos. Ou seja, depois disso, mesmo que a vítima denuncie, o autor do crime não pode mais responder por ele.

No ano passado, o plenário do Senado aprovou proposta de emenda à Constituiç­ão, de autoria do senador Jorge Viana (PT-AC), que torna o estupro um crime imprescrit­ível. A proposta está agora sob análise da Câmara dos Deputados.

Caso o projeto vire lei, não haverá mais tempo mínimo para que as vítimas façam a denúncia à Justiça. Hoje, no caso de crianças e adolescent­es, a contagem de tempo para a prescrição pode começar a partir da data em que a vítima completa 18 anos.

O argumento jurídico para tornar o estupro imprescrit­ível é que há um natural lapso temporal entre o crime cometido e o tempo que se leva para que a vítima se recupere do trauma sofrido e tenha coragem de denunciar o agressor.

Lembrando que, na maior parte dos casos que envolvem crianças e adolescent­es, o criminoso é um familiar ou alguém bem próximo a elas.

Espera-se que com a mudança haja mais chance de voz e justiça ao estimado meio milhão de estupros que o país vive e silencia todos os anos.

Crimes sexuais são historicam­ente subnotific­ados no mundo todo. É uma situação própria do pós-trauma, da dificuldad­e das vítimas em revelar o ocorrido

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