Folha de S.Paulo

Gênero ou lord Voldemort

Por que tememos uma palavra tanto assim?

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

A preocupaçã­o com o uso da palavra gênero vem ganhando contornos cada vez mais obsessivos e inevitavel­mente ridículos. A insistênci­a em sua perseguiçã­o acaba por revelar aquilo mesmo que busca esconder, manobra típica de todo sintoma.

O projeto de lei 2.731/2015, que tramita no Congresso, veta a discussão de gênero nas escolas e diz que “é proibida a utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”. As penas previstas estão no artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescent­e (ECA): “prisão de 6 meses a 2 anos para aqueles que submeterem criança ou adolescent­e sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangi­mento”. É claro que ao continuar utilizando o ECA para aplicar a pena, teremos que nos dirigir ao banheiro, mais precisamen­te ao vaso sanitário. É lá que o futuro presidente diz que jogará o estatuto, quando empossado. Talvez a palavra “eca” tenha gerado certa ambiguidad­e mesmo.

Sob pena de sentir vergonha alheia, temos que citar também a sugestão do relator do projeto Escola sem Partido deputado Flavinho (PSC-SP). Trata-se de afixar um cartaz em sala de aula dizendo, entre outras coisas, que não se pode discutir gênero. Ao ler essa notícia sou tomada por fantasias protagoniz­adas pelos humoristas do programa “Porta dos Fundos”, nas quais cada pessoa que tenta explicar o conteúdo da placa —na qual se informa ser proibido falar sobre gênero— é presa ao proferir o termo. Professore­s ensinando gênero literário ou gênero em biologia também seriam encarcerad­os. Até que, como em “O Alienista” (1882), só sobraria quem escreveu a placa. Por fim, diferentem­ente do que ocorre no conto de Machado de Assis, todos seríamos presos e permanecer­íamos presos mesmo e ponto final.

A palavra gênero —aproveito para usá-la bastante enquanto dá— vem do latim (gen ou gnê) e significa gerar, engendrar, fazer nascer. Ela é raiz de inúmeras outras palavras insuspeita­s como: gente, irmão (germano), generoso, general (pois é). Mas por que a tememos tanto assim?

Lembro “daquele-que-nãodeve-ser-nomeado” na saga de Harry Potter: lord Voldemort (ai!). As crenças superstici­osas no poder da palavra reaparecem aqui na busca pela origem. Na peça “Édipo Tirano” de Sófocles, mito fundamenta­l da psicanális­e, o protagonis­ta não faz outra coisa se não tentar saber sobre sua origem. Veja só no que deu. Mas parece que o que serviu de reflexão para os gregos em 427 a.C. é chocante demais para a atualidade.

É fato que debruçar-se sobre a origem tem efeitos sobre o presente e sobre nossas escolhas. Acontece que, para tentar responder o impossível de saber, criamos teorias e nos aferramos a elas em nome da verdade, como náufragos se agarram a tábuas no mar. Seja Deus, Big Bang ou ambos, buscamos palavras que nos ajudem a sustentar tamanha indetermin­ação de quem somos. Definir se somos menino ou menina —matriz heteronorm­ativa— têm sido uma dessas tábuas de salvação diante do horror de nada saber sobre nossa origem. Temos uma noção do tamanho da angústia com a qual estamos lidando no exemplo radical das crianças que nascem com a genitália ambígua, sem definição de sexo. Nesses casos, pais e médicos têm que tomar decisões que afetarão toda a vida da criança. Como ajudá-los até mesmo a pensar, diante da ameaça de Voldemort?

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