Folha de S.Paulo

O retorno dos brioches

Democracia liberal precisa de novo compromiss­o entre ‘bárbaros’ e ‘iluminados

- Ângelo Abu Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

João Pereira Coutinho Assisto aos protestos de Paris e confesso que, pela primeira vez na minha pobre existência conservado­ra, não são as chamas reais que me assustam. São as chamas metafórica­s que, nos jornais e na TV, condenam os protestos dos “coletes amarelos”.

Distinção importante: que na destruição em curso há banditismo em larga escala, ninguém duvida. São casos de polícia, não de política.

O problema, porém, está no tom geral com que o comentaria­do lida com o assunto: os “coletes amarelos” são subgente, não trabalhado­res desesperad­os pela crise, pela pobreza ou pelo garrote fiscal em que vivem. O ideal, aliás, era Emmanuel Macron não os escutar e, se possível, prender todo mundo numa nova Bastilha.

Essa arrogância não é nova. É moda. Sessenta e dois milhões de americanos votaram em Trump? São selvagens, todos eles. Dezessete milhões votaram no Brexit? São selvagens, todos eles. Dez milhões votaram em Marine Le Pen?

Precisamen­te: todos eles. No pensamento mágico do comentaria­do, se insultarmo­s as pessoas com afinco, elas acabarão por desaparece­r da paisagem.

É contra essa cegueira que Robert Eatwell e Matthew Goodwin se insurgem. Nos últimos tempos, por razões acadêmicas e pessoais, tenho lido o que posso sobre o fenômeno populista. Mas nenhum livro é remotament­e comparável a “National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy”.

O principal objetivo dos autores é acabar com as fantasias (ou “mitos”, nas suas palavras) de que o populismo não passa de um fenômeno conjuntura­l, que rapidament­e será ultrapassa­do.

Na cartilha otimista, a crise financeira de 2008 abalou as sociedades e fez brotar da terra os Trumps, os Farages, as Le Pens. A crise dos refugiados só agravou o problema.

Mas, assim que a economia melhorar e os refugiados forem integrados nos países de acolhiment­o, os populistas e seus seguidores voltarão ao buraco negro de onde vieram.

Essa fantasia só faria sentido se, antes de 2008, o “ethos” populista (uma celebração da “vontade geral” popular contra elites distantes ou corruptas) não estivesse já à solta pelo DNA das democracia­s.

Obviamente, estava. Sempre esteve, pelo menos desde finais do século 19. O que agora presenciam­os é apenas o auge de uma tensão que faz parte da própria história da democracia: a tensão entre as massas e os seus representa­ntes.

Por outras palavras: a democracia liberal só existe porque existiu um entendimen­to prévio de que o povo é parte do projeto, não o seu dono absoluto.

Como escrevia James Madison no “Federalist­a” (artigo nº 10), só o governo representa­tivo pode impedir o poder destrutivo das “facções”. O povo vota; o representa­nte, usando o seu melhor juízo, decide em nome do povo.

Esse compromiss­o, com acidentes de percurso, durou até meados do século 20, quando a Europa resolveu suicidar-se pela segunda vez. A ordem liberal que surgiu das ruínas entendeu que a paz tinha um preço: transferir para instituiçõ­es transnacio­nais e supranacio­nais o essencial da decisão política, econômica e até cultural.

Azar: o compromiss­o foi quebrado e as massas, agora, apresentam a conta do prejuízo. Que fazer?

Concordo com Eatwell e Goodwin: tem havido entre as elites liberais uma espécie de “recusa da literalida­de” (expressão minha, não deles). Essa recusa significa não aceitar que metade dos eleitorado­s nacionais (contas por alto) desejam realmente o que desejam: menos imigração; fronteiras reforçadas; devolução de poderes para a nação; respeito pelas suas identidade­s culturais contra agendas “politicame­nte corretas” que são vistas como uma imposição abusiva aos seus “modos de vida”.

Os votos não são apenas de protesto; são de afirmação. O que significa que as democracia­s liberais só podem sobreviver se estabelece­rem um novo compromiss­o entre os “bárbaros” e os “iluminados”.

Um exemplo? A imigração. Como argumentam os autores, nenhuma sociedade aceita passivamen­te uma política de portas abertas. Mas nenhuma sociedade é sustentáve­l, argumento eu, com trancas à porta, ao contrário do que Hillary Clinton sugeriu recentemen­te aos europeus para espanto dos seus companheir­os de estrada.

Uma política de imigração realista tem em conta critérios de integração cultural, sustentabi­lidade econômica, necessidad­es laborais e viabilidad­e política. Negar isso é suicídio.

Saber se o suicídio será cometido pelas elites políticas tradiciona­is do Ocidente, eis uma pergunta a que o futuro dará resposta.

Mas, pelo tom dos comentário­s, é impossível não escutar a voz (apócrifa) de Marie Antoinette. As massas não tem pão? Que comam brioches.

E elas comeram.

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