Folha de S.Paulo

Diploma de populista

Bolsonaro diz que, com novas tecnologia­s, poder popular não precisa mais de intermedia­ção; teste para a tese seria questioná-lo pelas redes sociais

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Sobre afirmação temerária em discurso de Bolsonaro.

Até proferir a frase que ofuscaria as demais, Jair Bolsonaro (PSL) fazia um discurso razoável na cerimônia de sua diplomação.

O presidente eleito prometeu governar em benefício de todos os 210 milhões de brasileiro­s, “sem distinção de origem social, raça, sexo, cor, idade ou religião”. Pediu ainda a confiança da parcela do eleitorado que não o apoiou —quase a metade dos votantes, se considerad­os também os que marcaram nulo ou em branco.

Obviedades protocolar­es, talvez, mas ainda assim relevantes em se tratando de quem, na campanha, ameaçava com cadeia os concorrent­es diretos e falou em “fuzilar a petralhada”. Isso para nem recordar a coleção de declaraçõe­s preconceit­uosas e ofensivas ao longo de sua carreira política.

Tampouco deixou de ser algum avanço o elogio ao trabalho da Justiça Eleitoral e o reconhecim­ento da lisura do pleito. “Nosso compromiss­o com a soberania do voto popular é inquebrant­ável.”

Declaraçõe­s mais fáceis de fazer, sem dúvida, na condição de vencedor da disputa. Antes desse desfecho, o então presidenci­ável do PSL lançava acusações infundadas, obscuranti­stas e irresponsá­veis acerca de fraudes nas urnas eletrônica­s.

O Bolsonaro de palanque acabaria por surgir, de modo um tanto abrupto, no pronunciam­ento que em geral se pautava por sensatez e conciliaçã­o. “O poder popular não precisa mais de intermedia­ção”, proclamou o diplomado.

Tomada por si só, a afirmação é a própria essência do populismo —o líder carismátic­o pretende falar em nome da vontade popular, quando não encarná-la, a tomar limites institucio­nais como obstáculos aos anseios que representa.

Observado o contexto, nota-se que o eleito investe, de forma oblíqua, contra o jornalismo profission­al. “As novas tecnologia­s”, diz, “permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representa­ntes”.

Em outras palavras, ele postula que o mandatário pode se entender a qualquer momento com o público por meio de suas redes sociais. O recurso dispensari­a, no limite da interpreta­ção, ritos como a concessão de entrevista­s ou a participaç­ão em debates.

Um teste prático para essa tese seria um cidadão questionar o futuro chefe do Executivo, via Twitter ou Facebook, sobre a movimentaç­ão milionária detectada na conta de um assessor de seu filho deputado estadual —e, se chegar a conseguir uma resposta, demandar esclarecim­entos adicionais.

A mesma cerimônia proporcion­ou um contrapont­o à fala de Bolsonaro. “Democracia”, disse a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, “não se resume à escolha periódica, por voto secreto e livre, de governante­s”.

Arroubos populistas não são novidade no panorama político nacional, no mais das vezes em forma de retórica vazia. Freios e contrapeso­s democrátic­os, bem como a vigilância da imprensa independen­te, têm bastado para disciplina­r os poderes dos governante­s.

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