Folha de S.Paulo

Dois presidente­s e um discurso

- Roberto Dias roberto.dias@grupofolha.com.br

são paulo No tempo em que televisore­s e antenas eram muito caros, o povoado Curtume, em Alagoas, montou sua “pracinha da TV”, onde as pessoas se reuniam diante do único aparelho da área. A sabedoria popular acabou por rebatizá-la de “praça da discórdia”, tamanho o desacordo sobre que canal assistir.

Corta para 2018, e o assunto em Curtume mostra como a tecnologia soterrou motivos para tal desavença. É com orgulho que se fala que numa capela da região, meses atrás, casou-se “o Whindersso­n” —um dos principais youtubers do país.

O Brasil de José Sarney é o da Curtume antiga. Dizia na década passada o então presidente do Senado: “A tecnologia levou os instrument­os de comunicaçã­o a tal nível que a discussão é: quem representa o povo? Diz a mídia: somos nós. Dizemos nós representa­ntes do povo: somos nós. A mídia passou a ser inimiga das instituiçõ­es representa­tivas”.

O Brasil de Jair Bolsonaro é o da Curtume de 2018. Disse nesta semana o presidente eleito: “O poder popular não precisa mais de intermedia­ção. As novas tecnologia­s permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representa­ntes”.

Os dois ouviram um galo cantar e o localizara­m cada um em um lugar —ambos errados. A evolução tecnológic­a mudou muita coisa, mas a relação disso com o poder democrátic­o difere da expressada por eles.

Não é papel da mídia, tampouco da sua vertente jornalísti­ca, substituir a representa­ção parlamenta­r ou funcionar como garoto-de-recados entre o eleitor e seus representa­ntes. Num imenso erro de compreensã­o, o novo presidente parece crer que solapa o jornalismo ao tuitar o nome de ministros e fazer lives.

A possibilid­ade de defender causas nas redes sociais traz avanço para a democracia. Mas isso não faz do país uma imensa ágora virtual. De comum entre o discurso dos dois presidente­s em décadas diferentes, só a necessidad­e conjuntura­l de arrumar uma cortina de fumaça para os problemas apontados pela mídia.

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