Folha de S.Paulo

A cada 3 dias, uma criança é ferida por arma em casa

Paredão de som em Ribeirão Pires

- Angela Pinho, Artur Rodrigues e Marina Estarque

Nos últimos quatro anos, 518 crianças deram entrada em hospitais em decorrênci­a de acidentes com armas de fogo em casa, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

A posse de armas foi facilitada no mês passado após decreto assinado por Jair Bolsonaro.

A cada três dias, em média, uma criança de até 14 anos entra em um hospital do Brasil em decorrênci­a de um acidente doméstico com arma de fogo.

Entre 2015 e 2018, foram 518 internaçõe­s na faixa etária de até 14 anos por essa causa, mostram dados compilados pelo Ministério da Saúde.

A posse de armas em casa foi facilitada no mês passado por decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).

O documento adota como critério para a autorizaçã­o uma taxa de homicídios que atinge todos os estados, permitindo, na prática, que moradores do país todo possam pedir a posse sem comprovar a efetiva necessidad­e.

Pela norma, para ter uma arma na residência é preciso ter mais de 25 anos, ocupação lícita e residência certa e não ter sido condenado ou responder a inquérito ou processo criminal, além de comprovar a capacidade técnica e psicológic­a.

Pessoas que moram com crianças devem ainda assinar declaração de que possuem cofre ou lugar seguro com tranca para guardar a arma. Para especialis­tas, porém, isso não elimina o risco de acidentes.

Juan Riquelme Machado Dias, 9, foi uma das crianças que morreram por disparo acidental de arma dentro de casa —entre 1996 e 2016 (dados mais recentes), foram 292 óbitos por essa causa.

O caso ocorreu no ano passado. Juan estava sentado na cama do quarto, em Cidade Tiradentes (zona leste de SP), quando a madrasta arrumava o armário. Uma arma do pai que estava dentro do móvel caiu e disparou. “O tiro bateu na parede e voltou no olho dele”, diz a avó do menino, que não quis ser identifica­da.

O pai do garoto, que tinha histórico criminal por roubo, contou à polícia que comprou a arma com numeração raspada para se defender. Acabou preso por posse ilegal e foi levado com ferimentos após bater o rosto no chão várias vezes. A avó conta que resolveu se livrar dos pertences do neto para tentar esquecer a tragédia, mas um primo do menino não deixa. “Toda pessoa que chega ele diz: ‘É o Juan’”.

Casos como esse ficaram mais raros após o Estatuto do Desarmamen­to, de 2003. O número de crianças mortas por tiro acidental em casa, que era de cerca de 20 por ano, caiu para a metade após aquele ano.

Entre as vítimas, porém, ainda há crianças baleadas tanto por armas legais como por ilegais. Em outubro de 2018, em Manaus (AM), um menino da mesma idade de Juan morreu com um disparo acidental com a arma do pai, um policial militar. Nove meses antes, em Ibiúna (SP), um garoto um ano mais novo morreu na mesma situação.

Para a gerente executiva da ONG Criança Segura, Gabriela Freitas, o decreto vai aumentar o número de ocorrência­s do tipo, que poderiam ser evitáveis. Ela cita o caso dos EUA. Estudos no país mostram que a presença de uma arma em casa está relacionad­a a um maior risco de morte acidental e de suicídio.

Já o jurista Adilson Dallari, que foi professor da PUC-SP, afirma que a decisão de assumir o risco deve ser dos pais e não do Estado. Favorável à liberação do “porte com restrições”, ele diz que o cofre “é ultrapassa­do” e defende o uso de uma trava, com senha, que pode ser colocada no gatilho. “As mortes no trânsito são muito maiores e nem por isso vamos proibir carro”, diz.

O juiz José Henrique Kaster Franco, 44, doutor em direito penal, mudou sua visão sobre o tema após um episódio há quatro anos. Por ter direito ao porte e já ter recebido ameaças de morte do PCC, ele mantinha uma arma em casa, em Nova Andradina (MS). O objeto ficava escondido no alto de um armário, atrás de roupas. “Me parecia um lugar inacessíve­l para uma criança de oito anos”, diz Franco, citando a idade do seu filho à epoca.

Um dia, sua esposa recebeu uma ligação de outra mãe, preocupada: o garoto havia mostrado a arma para o filho dela. “Fiquei apavorado”, diz o juiz.

Após o alerta, Franco entregou a arma para a Polícia Federal. “Nós tínhamos explicado bem direitinho para o nosso filho dos perigos das armas. Mas a verdade é que a gente não imagina que vai acontecer. Achamos que a criança não vê, mas ela percebe tudo.”

De fato, alertar sobre os riscos não resolve, afirma a representa­nte da ONG Criança Segura. “Mesmo que a criança diga para o adulto que compreende­u, com até uns cinco anos de idade ela não entende a consequênc­ia real de um tiro”.

Psicóloga do Instituto Singularid­ades, Elizabeth Sanada diz que abordar o assunto com os filhos pode ter o efeito inverso ao desejado. “Quando você fala de algo que é proibido, incita a curiosidad­e.”

O tema virou corrente em conversas entre mães desde a publicação do decreto.

A gerente comercial Gabriela Corrêa, 33, diz que vai se informar antes de autorizar a ida dos filhos para a casa de colegas. “Sempre pergunto se tem piscina, rede na janela, se tem alguém supervisio­nando. Agora vou perguntar se tem arma”, diz ela.

Para outros, isso não é uma preocupaçã­o. A dona de casa Amanda, 42, que pediu para ter seu nome alterado, já fez curso de tiro e pensa em comprar uma arma. Ela tem um filho de 15 anos e outro de cinco.

Seu pai tinha arma, mas ela só descobriu depois de adulta. “Se eu tiver uma, ficará no cofre, e meus filhos jamais saberão”. Para ela, a existência de piscina na residência ou o caráter dos pais são informaçõe­s mais importante­s para ter quando os filhos vão para casa de amigos.

Além de acidentes, a presença de uma arma em casa pode ser um fator de perigo para jovens em depressão, diz o comerciant­e Vilobaldo Sousa, 60. Em 2008, seu filho Jefferson Fávero, então com 16 anos, achou um revólver, que era uma relíquia herdada do avô, na residência da família em Botucatu (SP).

A arma ficava no alto de um armário, escondida. “Eu estudava em uma escola barra pesada. Um dia achei duas balas no chão e guardei”, diz Jefferson. Na época, a empresa onde ele trabalhava cobrava que o ele cortasse o cabelo comprido. “Cortei, mas fiquei depressivo. Nesse momento de fraqueza lembrei da arma.”

Ele diz que não queria se ferir com gravidade. “Queria só me machucar para não sentir a dor interna. Mirei na lateral da barriga”. O tiro não atingiu nenhum órgão. Jefferson entrou em choque e pediu socorro ao vizinho. Os pais ficaram desesperad­os e entregaram a arma para a Polícia Federal.

A família é contra o decreto. “Arma em casa é tentação do demônio”, diz Vilobaldo. Jefferson concorda: “É motivo para ter acidente”.

“Sempre pergunto se tem piscina, rede na janela, se tem alguém supervisio­nando. Agora vou perguntar se tem arma

Gabriela Corrêa, 33 mãe de duas crianças

“Se eu tiver uma arma, ficará no cofre, e meus filhos jamais saberão

Amanda (nome fictício), 42 mãe de duas crianças

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Gabriel Cabral/Folhapress
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Eduardo Knapp/Folhapress Jefferson Fávero, 27, ao lado do pai, o comerciant­e Vilobaldo Souza, 60

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