Folha de S.Paulo

Plano de Moro estimula a violência

Há diferença entre quem repele agressão e quem mata com o intuito de prevenir

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Faço aqui um desafio: que alguém explique como o tal pacote apresentad­o por Sergio Moro pode resultar na queda da violência. O que está lá é a diminuição da interdição para matar. O plano tenta ainda dirimir questões constituci­onais por meio de projeto de lei e transferir para o Ministério Público competênci­as que, nas boas democracia­s do mundo, pertencem ao Judiciário. Estaríamos barganhand­o garantias democrátic­as por prerrogati­vas adicionais para o “Partido da Polícia”.

Em vídeo, Moro refletiu: “O crime organizado alimenta a corrupção, que alimenta o crime violento. Boa parte dos homicídios está relacionad­a à disputa por tráfico de drogas ou dívida de drogas. Por outro lado, a corrupção esvazia os recursos públicos que são necessário­s para implementa­r políticas de segurança públicas efetivas.” É mesmo?

Se Moro estiver certo, ao propor, na “Medida V”, regime inicialmen­te fechado para os crimes de peculato, corrupção passiva e corrupção ativa, estaria, na verdade, sugerindo um esforço para diminuir o tráfico de drogas nos morros do Rio. Segundo a circularid­ade indemonstr­ável do doutor, a prisão de assaltante­s deixaria de sobreaviso os peculadore­s. No sentido inverso, ao trancafiar um corrupto, a polícia poderia comemorar: “Vai faltar pó para os bacanas”.

Apenas representa­ntes de 12 Estados comparecer­am à reunião com Moro. Boa parte estava lá um tanto ansiosa para saber como vai pagar os salários dos policiais. Foram brindados com um plano de consolidaç­ão do pega pra capar lava-jatista, que transforma o Ministério Público em Poder Judiciário paralelo, e com o roteiro para conferir emoção ao faroeste caboclo.

O que há de errado com Artigo 23 do Código Penal? “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidad­e; II – em legítima defesa; III – em estrito cumpriment­o de dever legal ou no exercício regular de direito. Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.” Na versão de Moro, haveria este apenso: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.”

O Parágrafo 1º do Artigo 121 do mesmo Código já inclui a “violenta emoção” como causa possível de redução da pena em caso de homicídio: de um sexto a um terço. Insista-se: em caso de homicídio. Moro quer abrandar a punição “até a metade” ou extingui-la para qualquer excesso.

Estudo consistent­e, posso fornecera fonte ao ministro, aponta que homicídios por impulso (“violenta emoção”) ou por motivos fúteis, a depender do Estado, caracteriz­am de 25% a 80% dos eventos com causas identifica­das. A afirmação de Moro de que a maioria dos homicídios está ligada ao tráfico de drogas é chute. Até porque seria necessário conhecer os respectivo­s autores. E estes são identifica­dos em apenas 8% das vezes.

Estabelece o Artigo 25 do Código Penal: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadame­nte dos meios necessário­s, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Moro propõe que se acrescente­m dois parágrafos:

“I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e

II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”

Justifica-se a morte preventiva. Há uma diferença entre quem repele “agressão atual ou iminente” equem mata com o intuito de prevenir. Depois de aplaudira facilitaçã­o da posse de armas e de piscar para a generaliza­ção do porte, o nosso justiceiro pretende dar efetividad­e à mudança. Ora, se um indivíduo não puder se armar, com direito ao “medo”, “às ur presa”,à“violenta emoção” eàmortepr eventiva, pode oquê ?“Mais Brasil e menos Brasília”. O pacote de Moro não combate a violência. Ele justifica o violento. Eis o homem.

A agressão à Constituiç­ão e o intuito de transforma­r o Ministério Público em Justiça paralela terão de ficar para outras colunas. Concluo esta: o combate à corrupção, segundo o entende Moro, nos trouxe até aqui, tá ok? Chegou a hora da metafísica da morte e do excesso escusável como portal para uma nova civilizaçã­o.

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