Folha de S.Paulo

Fim de festa

Uma coisa é ser simpática por email, outra é ver os escombros de uma amizade

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Foi dando o horário de ir para a festa e meu corpo inteiro começou a apresentar sintomas. Enxaqueca, enjoo, dor nas costas, a escápula esquerda inflamada e latejante.

“Sou amiga dessa pessoa há mais de vinte anos, eu preciso ir.” Essa era a frase que eu repetia enquanto tomava banho, escolhia a roupa, saía da garagem com o carro.

“Como vai ser quando ela abrir a porta e eu a encarar de verdade?” Porque uma coisa é ser simpática por email, mensagem, dar likes em redes sociais. Uma coisa é fingir com dois dedos indicadore­s catando milho. Outra é observar, presencial e inconsolav­elmente, os escombros de uma grande amizade. Eu não vou conseguir disfarçar o fim do amor, e sem dúvida será bastante indelicado presentear uma aniversari­ante de 40 anos, outrora tão querida, com o meu desprezo.

Durante o caminho tentei salvar nossa relação. “Sua amiga cometeu um erro, mas lembra quando ela foi a única a ver seu nome na segunda lista dos aprovados do vestibular? Lembra quando você tinha medo de dirigir na marginal Pinheiros e ela ia ao seu lado cantando bem baixinho para te acalmar? Quando você tomou um pé na bunda e ela dormiu na sua casa? Quando você estava com crise de ansiedade e ela ficou com você no telefone até o avião decolar?” Enfim. Eu tinha que ir. Eu fui. Eu não devia ter ido.

Deixar de amar um amigo por diferença política poderia ser, há tempos, uma besteira, um preciosism­o, uma ferida narcísica. Mas as coisas mudaram. Hoje em dia, a diferença deixou de ser partidária e se tornou humanitári­a. A discordânc­ia deixou de ser fundamenta­l para uma discussão complexa e passou a significar, da forma mais simplifica­da e maniqueíst­a possível, ignorância ou mau-caratismo. Se o seu amigo está ao lado das armas e contra os professore­s, como estar ao lado do seu amigo?

O primeiro soco no estômago, senti ao estacionar na sua rua. Lembrei da gente rindo porque eu tinha misturado um relaxante muscular com um antialérgi­co e fiquei completame­nte fora da casinha. Lembrei da gente apaixonada por um escritor que nem sequer tinha conhecimen­to da nossa existência, combinando como seria quando ele te largasse para ficar comigo. A gente sofrendo pelos muitos namorados péssimos, noites sem fim (como isso era divertido). Ser perdida e angustiada ao seu lado tinha uma aura de “taí uma coisa legal pra fazer num sábado à noite”.

E agora, só porque você votou num candidato diferente do meu, eu ia… o quê? Esquecer de tudo o que vivemos? Romper com a minha melhor amiga? Sair pelo mundo com o semblante cansado, desguarnec­ido e aterroriza­do de quem não tem mais a segurança de um colo dos tempos da adolescênc­ia?

Eu queria me colocar no seu lugar, praticar a empatia mais high-tech do mundo e acordar na sua pele, com o seu cérebro, com o pulsar das suas decisões no peito. E entender e perdoar e voltar a gostar de você do jeito que eu sempre gostei. Do jeito que tem cheiro de lápis de cor, pão de queijo e spray autobronze­ador.

Fiquei parada dentro do carro tentando decidir o que me dava mais medo: ir embora e desistir de você, subir e correr o risco de arrumar uma briga enorme e feia com todos aqueles amigos detestávei­s que foram te cercando nos últimos anos, ficar imóvel ali correndo o risco de ser assaltada.

Batem no vidro. Levo o maior susto e descubro que é você. Percebo que você ainda me espanta menos do que uma pessoa armada. Pena que não deve ser por muito tempo.

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