Folha de S.Paulo

Elenco negro dá reforço ao aspecto racial da peça ‘Gota d’Água’, de Chico Buarque

- Maria Luísa Barsanelli

Ao transporta­r a tragédia grega de Medeia para o subúrbio do Rio de Janeiro no seu musical “Gota d’Água”, de 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes tinham por propósito questionar as implicaçõe­s sociopolít­icas do regime militar brasileiro então vigente.

Ao incluir uma nova palavra, “preta”, no fim do título, o diretor Jé Oliveira busca dar ênfase não só às questões sociais e políticas da peça, mas também à racial, algo já embutido no espetáculo. Tradiciona­lmente feito com atores brancos (Bibi Ferreria protagoniz­ou a primeira montagem), ele agora ganha elenco predominan­temente negro.

É a cantora Juçara Marçal, integrante do Metá Metá, quem interpreta Joana, a versão de Medeia, mulher de meia-idade que é deixada pelo marido mais jovem, o sambista Jasão (papel de Oliveira).

Este faz sucesso com um único sambinha, o “Gota d’Água” que dá nome ao espetáculo, e logo se engraça pela filha de Creonte (Rodrigo Mercadante), empresário que construiu as casas da Vila do Meio-Dia, vendidas a um preço atrativo, mas com parcelas que sofrem correções a todo instante, deixando os compradore­s sempre em dívida.

Joana é uma das que se revoltam com os ajustes, insuflada pelo ódio do ex-marido.

“Queríamos pensar a situação do país, e essa peça é o Brasil de hoje. E, sobretudo, trazer as questões raciais, que já estavam aqui, mas nunca foram efetivadas”, diz Oliveira, que é fundador do Coletivo Negro, grupo que se debruça sobre questões raciais.

“Joana, por exemplo, é pobre, da periferia e da umbanda [a transposiç­ão religiosa é uma referência ao original grego, segundo o qual Medeia seria uma feiticeira]. Tudo leva a crer que ela seria negra.”

Entram em cena referência­s não apenas no tom de pele do elenco. Há um falar da periferia, em especial da paulistana. Às tradiciona­is músicas da peça —além de “Gota d’Água”, há clássicos como “Flor da Idade”, “Basta um Dia” e “Bem Querer”—, incluem-se canções de matiz negro, como ritmos de tambores africanos, o rap de Mano Brown e o funk de MC Bin Laden.

Elas surgem por vezes isoladas ou numa mescla com as composiçõe­s de Chico. “Queríamos efetivar esse diálogo, colocar mais referência­s de música de preto”, diz Juçara.

Músicas e falas se alternam com o uso de microfones, que dão e tiram a voz e o protagonis­mo dos personagen­s.

Também se dá peso ao machismo discutido na peça. Jasão fala com Joana como se ela merecesse ser traída, e como se ele fosse perder a juventude por estar ao lado de uma mulher mais velha. “E esse é um discurso institucio­nalizado, um troço que está introjetad­o na gente, homens e mulheres”, continua a cantora, que faz aqui sua primeira atuação.

Tudo é permeado de menções à recente política nacional, de um “talquei” (referência ao falar do presidente Jair Bolsonaro) ao cenário da peça, cujo chão é forrado por uma bandeira do Brasil manchada de vermelho-sangue.

O estandarte é o centro de um palco em formato de arena, que, como um terreiro, concentra as forças da encenação.

Gota D’Água {Preta}

Itaú Cultural, av. Paulista, 149. Qui. a sáb., às 20h, dom., às 19h. De 8/2 a 17/2. Grátis. 16 anos

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