Folha de S.Paulo

Matéria e tempo

Gérard Grisey promoveu redimensio­namento da força expressiva da música

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Há alguns meses, passaramse 20 anos da morte de um dos mais significat­ivos músicos contemporâ­neos das últimas décadas: o francês Gérard Grisey.

Um dos principais nomes do que se convencion­ou chamar de “música espectral”, Grisey foi responsáve­l por uma obra cuja riqueza não está apenas nas novas soluções formais aos problemas legados pelas dificuldad­es da música serial a partir do final dos anos 1960, mas no redimensio­namento da força expressiva da música.

Uma das mais fortes estratégia­s de emancipaçã­o colocada em circulação pela estética contemporâ­nea consiste na desativaçã­o dos dispositiv­os que pareciam até então ser os instrument­os de nossa alienação.

Uma desativaçã­o que passa pela repetição e pelo deslocamen­to —o que é apenas um setor da maneira com que a vida comumente parte da apropriaçã­o mimética do que está morto para criar novas formas.

Assim, muitas vezes as artes absorveram linguagens inexpressi­vas e maquínicas, repetições industriai­s, dentro de uma dinâmica de reversão de seus efeitos. Há algo disso na maneira com que a música espectral constituiu seu horizonte.

Uma das maneiras de compreende­r a música espectral diz respeito ao impacto do desenvolvi­mento tecnológic­o dos processos de síntese sonora. As técnicas descoberta­s pela eletroacús­tica, como modulação de frequência, compressão de espectros harmônicos, dilatação do som no tempo, abriram dimensões até então impensadas de processame­nto do som, em especial da natureza e composição dos timbres por síntese aditiva.

O que para alguns poderia parecer certa submissão da composição musical a um fetichismo do som e de sua manipulaçã­o maquínica era, na verdade, possibilid­ade de modificar de maneira profunda a gramática da expressão musical. Pois a música não dependeria mais da lógica da composição por motivos, melodias, progressõe­s harmônicas e organizaçõ­es a partir do clássico sistema tensão-distensão.

Ela teria como sua matéria principal aquilo que, paradoxalm­ente, sempre foi seu verdadeiro elemento, a saber, o tempo e sua emergência. Como dizia Hanslick, música é igual a “formas sonoras em movimento”.

A esse respeito, lembremos de como a estrutura do tempo é a forma geral de nossas afecções. O tempo define como sou afetado, a intensidad­e do que me move.

Por isso, ele é a base de nossas expressões. O que Grisey fez foi se servir dos instrument­os tradiciona­is para recriar o processo de composição da estrutura interna dos sons, manipuland­o com isso o tempo da percepção, da expressão e da apreensão conceitual.

Voltemos a atenção, por exemplo, a “Vortex Temporum” (turbilhão do tempo), um de seus últimos trabalhos e certamente uma das obrasprima­s do repertório musical contemporâ­neo. Dividida em três seções, a peça parte de um arpeggio modulado pelo piano e por instrument­os de sopro em uma velocidade cambiante que mimetiza as ondas sinusoidai­s do som.

Ela ainda se constrói servindo-se de ataques, com ou sem ressonânci­a, e duração, com ou sem crescendo. O que parece material absolutame­nte elementar será a base para uma impression­ante dinâmica que expressa o tempo da respiração e de seus espasmos.

A pulsação da respiração elevada ao primeiro plano da forma fornece à primeira parte da peça uma carga expressiva pura, praticamen­te renovada pela liberação dos elementos tradiciona­is que compunham seu vocabulári­o.

A segunda seção se serve da lógica da extrema dilatação do espectro sonoro, apoiando-se principalm­ente nas cordas e em sequências horizontai­s de acordes de piano.

O mesmo material é agora submetido a um tempo oceânico que se assemelha, segundo o compositor, ao tempo das baleias e seus sons. Como se fosse o caso de fornecer duas figuras do tempo a partir dos mesmos elementos. É evidente a força da decomposiç­ão da dinâmica do tempo em prol de certa lentidão que é, acima de tudo, abandono do tempo humano.

Desta maneira, a música indica a forma de experiênci­as que a vida social parece nos impedir, adiantando com isso um tipo de liberdade que ainda será a forma mesma de nossa experiênci­a social.

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Marcelo Cipis

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