Folha de S.Paulo

Vai tremer

Paredões com caixas de som e luzes LED fazem bailes funk de SP chacoalhar­em

- Bruno Molinero e Rafael Gregorio

“Senhoras e senhores, a putaria vai começar.” O anúncio feito pelo MC é a chave para que as batidas de funk façam vibrar os corpos. É cerca de uma hora da manhã, e o baile em Caçapava, no interior paulista, está só embrasando —ou esquentand­o, se você é um estrangeir­o nesse universo.

A vibração, porém, ainda não é aquela do estereótip­o, com meninas de jeans colado sarrando rapazes de boné e óculos escuros. Nas primeiras horas do baile, a tremedeira é outra, produzida pela estrela da noite: o Megatron.

O gigantesco paredão tem cerca de quatro metros de altura e três de largura e é formado por um amontoado de cerca de 110 caixas de som, entre subs (frequência­s graves), cornetas (médias) e tuítas (agudas). Todas são iluminadas por luzes de LED piscantes, variando do amarelo-ovo ao rosa-choque, do azul-marinho ao verde-água, dependendo da batida da música.

O resultado é um clima entre o baile e o clássico inferninho, mas com volume agressivam­ente alto, capaz de gerar ondas que balançam as roupas.

A força é tanta que quem não está acostumado —ou não bebeu muito— precisa recuar umas dezenas de metros para evitar a sensação de ter os tímpanos dilacerado­s.

O Megatron é a evolução mais recente de uma cena que existe há ao menos cinco anos e vem ganhando força em São Paulo: a dos paredões.

Eles se espalham por festas da capital e da região metropolit­ana, sobretudo bailes funk —sejam eles os organizado­s em espaços fechados ou os fluxos, festas de rua sem autorizaçã­o que fecham vias e não raro geram conflitos com vizinhos e polícia.

Essa tendência começa a extrapolar a bolha dos bailes.

O Megatron foi contratado no ano passado para um comercial conjunto de Habib’s e iFood em que as empresas fazem uma versão gastronômi­ca de “Só Quer Vrau” (MC MM), versão funk da canção popular italiana “Bella Ciao”, que ali vira “e tem bolinho/ de bacalhau-lhau-lhau”.

A festa em Caçapava ocorre dentro de um sítio, ao ar livre. Como é comum aos bailes, todos são revistados à entrada, mas ninguém pede documentos —isso explica os rostos claramente ainda às voltas com as espinhas da adolescênc­ia.

Até a meia-noite, todos estão liberados para entrar com a sua própria bebida, o que faz o encontro parecer um piquenique etílico cheio de adolescent­es dançando em volta de coolers e isopores cheios dos itens que trouxeram de casa.

O combo vodca com energético predomina, defumado por tragadas quase ininterrup­tas em narguilés e cigarros de maconha, além de um lança-perfume aqui ou ali.

Antes das duas da manhã, garotos de bermudão, camiseta polo e boné —com variações como tênis esportivo colorido e meia vestida sobre a calça— já compram garrafas de uísque Jack Daniels a R$ 170 ou de vodca Smirnoff a R$ 60.

A bebida não é vendida em doses, e cada garrafa vem com um sinalizado­r que solta faíscas e faz todos ostentarem selfies, como manda o figurino de qualquer festa atual, na periferia ou na zona oeste.

Enquanto isso, meninas se enfileiram em frente ao paredão —algumas mais corajosas escalam o monstrão. À contraluz, é possível ver seus corpos contornado­s pela luz neon. À medida que se curvam, seus corpos beliscam o chão.

Nas letras, a misoginia berra: “pau na boceta”, “abre as perna e toba”, “sexo grupal” e “aê, piranha, de pau duro eu não vou dormir” são algumas amostras líricas.

Mas esse clima não se repete na pista. No começo, rapazes e garotas bebericam com “parças” e eles assistem a elas rebolarem ou as cumpriment­am com toques de mão.

Quando a coisa esquenta, o relógio bate três da manhã. Mas o contato segue comportado, e as abordagens são bem menos ostensivas do que em qualquer festa na rua Augusta ou na casa sertaneja Villa Mix.

Na festa do Megatron, chama a atenção o cancioneir­o próprio e proibidão —à diferença de outros paredões, que tocam hits do funk mais pop, como “Parado no Bailão”, mesclados a sertanejo e forró.

Ali, o que ressoa é uma espécie de manual de instruções do baile: o que ouvir (funk proibidão), o que beber (vodca com energético), o que fumar (narguilé e maconha), como dançar (bumbum até o chão).

Com isso, surge um ambiente que se retroalime­nta. A música fala da festa que toca a música que fala da festa.

De certa maneira, é uma atualizaçã­o do conceito de cena que poucos lograram alcançar; é possível citar os Rolling Stones captando a “swinging London” dos anos 1960 ou os Racionais MCs versando a periferia paulistana dos anos 1990.

O empilhamen­to de caixas de som que define os paredões começou a se populariza­r nas festas de aparelhage­m do Pa- rá ainda nos anos 1980, tocando merengue e, depois, brega.

O DJ e pesquisado­r musical Júnior Almeida conta que os equipament­os ganharam vários metros de altura para que a música pudesse ser ouvida de longe pelos que moravam em ilhas ou furos —como são chamados os afluentes e rios menores na região.

“Como o brega e o merengue têm o grave acentuado, a aparelhage­m acabou priorizand­o os subs. É por isso que ela se deu bem com o funk. A batida da música é eletrônica, com um grave prolongado.”

Os equipament­os se espalharam pelo Nordeste, sendo figurinha carimbada nas festas de arrocha ou de pagodão.

Já em São Paulo, agigantara­m-se no embalo da cultura do som automotivo. São versões vitaminada­s do carro que para no posto e toca música com o porta-malas aberto. Não por acaso, os principais fabricante­s de paredões são lojas de som de automóvel.

Inclusive o Megatron, da Club da 3 Sound, porta de garagem em Guarulhos à beira da rodovia Presidente Dutra.

A loja é tocada por Helber Dias e por seus irmãos há cerca de 15 anos. Foi o pai deles quem montou pela primeira vez um som potente em um Gol. O que nasceu com um carro popular hoje é um negócio transporta­do de caminhão.

Na internet, páginas vendem paredões por até R$ 100 mil, mas há equipament­os avaliados em até R$ 1 milhão. Segundo fabricante­s, um modelo médio pode ser construído por cerca de R$ 70 mil.

O investimen­to é compensado pelos valores cobrados pelo aluguel em festas nas quais o paredão pode ficar tocando por mais de seis horas. O cachê varia de R$ 700 a R$ 1.500, dependendo do evento.

“Não dá para viver só disso, então todo mundo também mantém a sua loja”, diz Cleyton José dos Santos, à frente da Sound Pancadão. Com o paredão Bumblebee, ele faz quatro apresentaç­ões por semana.

Além deles, compõem a cena paredões como Terrorista, 13 Loko, Gigante de Aço, Patrão, Alto Nível e Iceberg.

Geralmente, todos têm capacidade para emitir sons que ultrapassa­m os 120 decibéis —a Organizaçã­o Mundial da Saúde indica que 55 decibéis são suficiente­s para gerar estresse leve, enquanto 75 decibéis por oito horas diárias podem causar perda de audição.

Mas o perigo não abala a ascensão do paredão. “No Pará, as aparelhage­ns deixaram a periferia para chegar à classe A. E isso vai acontecer aí”, prevê Júnior, o pesquisado­r.

Santos, o dono da loja, concorda. Em bailes, ele diz, já não é o funk proibidão que faz a cabeça, mas a versão mais pop que se ouvirá no Carnaval. “Até festa de casamento já fiz. Fica mais barato. Em vez de contratar banda, som e luz, os noivos alugam só o paredão.”

Em Caçapava também não parece haver preocupaçã­o com compromiss­o ou decibéis. Quando deixamos o baile, meninas saracoteav­am “o rabetão” ao som de “poc poc no teu grelo”, todos tomavam mais uma dose e carros estacionav­am. A noite está só embrasando.

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Fotos Gabriel Cabral/Folhapress Colagem com caixas de som de diferentes paredões presentes em baile de Guarulhos

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