Filme sobre pedofilia dá tom político a Berlim
‘Grâce à Dieu’ era uma das produções mais esperadas do festival de cinema, mas não recebeu a louvação que se projetava
Depois de começar de forma despolitizada, com um filme sobre generosidade chamado “The Kindness of Strangers”, o Festival de Berlim recuperou sua tradicional verve engajada com “Grâce à Dieu”, longa que cutuca os bastidores da pedofilia na Igreja Católica.
A obra veio de quem não se esperava tamanha militância, o cineasta parisiense François Ozon. Não que seus outros filmes fossem anódinos, muito pelo contrário. É que o diretor de “Jovem e Bela”, “Swimming Pool” e “Dentro da Casa” até então havia se preocupado mais em devassar desejos e perversidades do que retratar assuntos de ressonância social.
Na trama estão três sujeitos de meia-idade que enfrentam o rescaldo psicológico dos abusos sexuais que sofreram na infância por um padre.
“Fiz vários filmes sobre mulheres fortes, porque o feminino é o terreno tradicional das emoções. Agora era a vez de explorar como os homens afloram esse lado”, disse o diretor em conversa com a imprensa.
Foi com essa ideia em mente que ele topou com uma associação que reúne vítimas de um sacerdote católico de Lyon. Bernard Preynart enfrenta acusações de dezenas de meninos com quem o religioso conviveu entre os anos 1980 e 1990. O cardeal Philippe Barbarin também responde a processo, sob a acusação de que teria acobertado os crimes.
Esse é o pano de fundo do novo filme de Ozon, que pode ser traduzido com o título irônico de “Graças a Deus”. Alexandre (Melvil Poupaud) é pai de adolescentes, continua frequentando missas, mas espera que a cúpula da Igreja tome uma atitude em relação ao padre que se aproveitou dele.
A obra marca uma inflexão que não é só temática. O próprio registro mais documental que ele imprime lembra pouco o apego à sensualidade de seus outros filmes. Nos trechos em que personagens rememoram os abusos sofridos, fica evidente o esforço do cineasta para não erotizar aquele contexto.
“Tomei liberdades ao dramatizar a história. As coisas que se vê no filme são mais leves do que as que de fato aconteceram, porque tive que proteger as pessoas”, afirmou Ozon.
A atenuação não impediu , porém, que o verdadeiro Preynart entrasse na Justiça francesa contra a estreia do filme em seu país. Ele afirma que o lançamento pode influenciar o processo, que está correndo.
O filme serviu para esquentar a disputa em Berlim, mas, embora aplaudido em sua primeira sessão, não colheu a louvação que se esperava. Pode ter a ver com o ritmo ralentado demais para uma obra que se anunciava como uma das mais urgentes da seleção.
Já o alemão “System Crasher”, de Nora Fingscheidt, foi recebido como uma positiva surpresa por seu retrato melancólico, e às vezes sarcástico, de uma garota de nove anos com problemas psiquiátricos.
Benni (Helena Zengel) é irrequieta, dispara palavrões a esmo, quebra os brinquedos alheios, bate nos colegas até arrancar sangue e tem surtos se alguém toca no rosto dela.
Pingando entre os vários lugares de acolhimento, ela ganha como tutor o igualmente explosivo Micha, e ambos começam a se afeiçoar um ao outro. A relação deles, contudo, não caminha para nenhum desfecho conciliatório.
Em vez disso, a diretora opta por lançar dúvidas sobre qual seria a solução ideal para acolher uma menina para quem instituição ou família alguma parece adaptada.
Um dos grandes acertos do filme é não recair nem no fetiche da desgraça nem num otimismo piegas. O outro é a escalação de Helena Zengel, revelação de 11 anos que não surpreenderia se levasse o prêmio de melhor atriz.