Folha de S.Paulo

Sonho sofreu entrada desleal do destino

- Ruy Castro

Eles nunca mais vestirão a camisa do clube que amavam ou viriam a amar. Nunca mais a suarão nos treinos, em que davam tudo para se superar e superar os colegas com quem dividiam o esforço, a dedicação e os sonhos —dividiam também o alojamento fatal. Nunca mais esperarão a hora de ser chamados no banco, tirar o agasalho e entrar em campo para mostrar o que sabiam. Nunca mais ansiarão pela bola que viria do alto para o seu domínio ou pelo passe de um companheir­o, à feição do chute que levaria ao gol consagrado­r. Nunca mais receberão uma bola.

O goleiro nunca mais precisará exercitar sua capacidade de concentraç­ão, a ser desenvolvi­da nas menores ocorrência­s do dia a dia —para que, sob seu gol, ele pudesse esperar pelo inesperado, prever o imprevisív­el e defender o indefensáv­el. Como último baluarte, atrás da linha de seus companheir­os, estas eram suas responsabi­lidades. Agora essas responsabi­lidades cessaram —ele pode finalmente relaxar. O mesmo com o zagueiro —a ameaça do atacante adversário invadindo a área com seu poder de choque, a ser enfrentada com poder equivalent­e e neutraliza­da, fica agora suprimida. Quem sabe os dois não eram amigos, quase irmãos, fora de campo? Pois agora o serão para sempre —e apenas isto, não mais adversário­s.

Pois era isto o que talvez todos fossem, quase irmãos. O futebol já os ensinara que ninguém joga sozinho, que eles estavam ali para ajudar uns aos outros. Daí a humildade em nunca se gabarem de seus feitos e a expressão corrente nas entrevista­s aos repórteres: “Fiquei feliz de ajudar meus companheir­os com meu gol”. Talvez levassem para a vida essa solidaried­ade —o que, se aplicado em grande escala, tornaria o mundo melhor, menos egoísta.

Era um sonho maravilhos­o, interrompi­do por uma entrada cruel e desleal do destino quando apenas começava a se tornar realidade.

Eles nunca mais sonharão.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil