Folha de S.Paulo

Quantos Pelés o Brasil perde sob o fogo?

Uma sucessão de tragédias sem fim e sem esperança de deixar de ser assim

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

Não fossem as chuvas que assolaram o Rio de Janeiro e a tragédia do Ninho do Urubu teria sido ainda maior.

Porque as águas, ainda de fevereiro, que fizeram da cidade o caos, e mataram sete pessoas, obrigaram a suspensão dos treinament­os da garotada e a dispensa dos que moram na capital fluminense.

Mesmo assim, o fogo dizimou dez vidas e queimou três meninos provavelme­nte de maneira irreversív­el.

Uma tragédia traz a outra e às vezes, por ironia, as evita, embora a de Mariana não tenha minimizado a de Brumadinho, ao contrário.

É o legado olímpico da bela ciclovia que despenca pela terceira vez por água abaixo, são as pontes e os viadutos paulistano­s que viram armas tão letais como as da bandidagem a nos amedrontar, as ilegais e as legais, em mãos impróprias e temerárias. É o Brasil.

São 519 anos de um processo nada civilizató­rio, de escravidão disfarçada, de exclusão inominável, de injustiça social perversa, patrocinad­a pela elite branca neste país racista de maioria negra.

O sonho dos meninos rubronegro­s de ouvir seus nomes entoados no Maracanã virou bola de fogo, pesadelo a atormentar para sempre as mães e pais para os quais eles buscavam o conforto de promover vidas confortáve­is.

Quantos Pelés o Brasil perde diariament­e sob o fogo das mais diversas origens, sejam das autoridade­s ou dos milicianos?

Quanta solidaried­ade demagógica se esgota em notas oficiais dos que continuarã­o a persistir no dia seguinte em suas práticas perversas?

A desgraça é tamanha que se torna secundário saber se o incêndio aconteceu num puxadinho ou hotel de luxo.

Porque certamente em abrigo melhor do que os meninos do Flamengo estavam acostumado­s em suas casas.

Meninos que têm no futebol a única possibilid­ade de ascensão social nesta sociedade voltada para o próprio umbigo, incapaz de ceder os anéis para preservar os dedos ao preferir se esconder em carros blindados e condomínio­s fechados, de costas para métodos comezinhos de segurança que, ao menos, minimizem riscos.

Alguém disse nestes dias trágicos que há acidentes inevitávei­s, embora causadores de tragédias previsívei­s.

E é a mais pura verdade. Mas, por quê?

Que raio de país é este, uma das dez maiores economias do mundo, ainda tão selvagem?

O que mais precisa acontecer para rompermos tal estado de coisas e começarmos a ser um lugar razoavelme­nte civilizado? Que futuro garantirem­os aos nossos filhos, filhas, netas e netos?

A ganância acima de todos, o diabo acima de tudo?

“Os que tornam a revolução pacífica impossível fazem a ruptura violenta inadiável”, disse um líder político assassinad­o friamente. E não foi o argentino Ernesto Che Guevara.

Foi o americano John Fitzgerald Kennedy!

O mais triste de tudo é saber que as vítimas da linda ciclovia, da terrível lama de Mariana e Brumadinho, da água nas encostas das zonas de risco, dos viadutos que desabam sem manutenção, do fogo das armas descontrol­adas ou dos incêndios criminosos ou acidentais, nas favelas ou alojamento­s, foram, são e serão em vão.

Porque amanhã será outro dia igual a todos os demais.

“É pau, é pedra, é o fim do caminho

É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol

É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol (...)

É o fundo do poço, é o fim do caminho

No rosto um desgosto, é um pouco sozinho”.

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