Folha de S.Paulo

Mãe de velejador preso em Cabo Verde relata saga

Brasileiro­s, que haviam sido condenados a dez anos de prisão por tráfico, foram soltos na quinta

- João Pedro Pitombo

Aniete Dantas, 52, descreve a saga depois da prisão do filho Rodrigo, 26, em Cabo Verde. Ao lado de outros dois velejadore­s brasileiro­s e um francês, ele foi acusado de tráfico após a descoberta de mais de uma tonelada de cocaína no veleiro.

Mãe do velejador Rodrigo Dantas, 26, que passou 14 meses preso em Cabo Verde, Aniete Dantas, 52, viveu cada passo do processo enfrentado pelo filho e pelos colegas velejadore­s Daniel Dantas e Daniel Guerra.

Os três brasileiro­s, além do capitão francês Olivier Thomas, foram presos em 2017, sob a acusação de tráfico internacio­nal de drogas, após a polícia cabo-verdiana ter encontrado mais de uma tonelada de cocaína dentro do casco do veleiro.

Eles alegam inocência. Foram contratado­s para fazer um serviço de delivery —entrega da embarcação em outro país— de um veleiro de propriedad­e do britânico George Edward Saul.

Os brasileiro­s e o francês foram inocentado­s no inquérito da Polícia Federal brasileira.

A Justiça de Cabo Verde, contudo, não entendeu desta forma e os condenou a dez anos de prisão. Há três semanas, entretanto, a sentença acabou anulada, e o processo será retomado do início.

A decisão reconheceu que houve violações à garantia de defesa dos réus no processo e determinou que seja realizado um novo julgamento.

Na quinta-feira (7), os três foram soltos e agora vão aguardar em liberdade os próximos trâmites da ação na Justiça cabo-verdiana. O processo segue em primeira instância, mas sem indicativo de data de novo julgamento.

Em depoimento à Folha, Aniete conta o calvário en- frentado pela família e fala da esperança de que o filho logo retorne ao Brasil.

Essa era a primeira viagem internacio­nal de Rodrigo em um veleiro. De certa forma, era o início da concretiza­ção de um sonho que começou a ser desenhado quando ele tinha 12 anos e matriculou-se na escola de vela em Salvador.

Na nossa família não tem velejadore­s, mas sempre tivemos muita ligação com o mar. Eu sou professora de educação física e dava aulas de natação. E para quem mora aqui, junto à Baía de Todos-os-Santos, é inevitável essa relação. Para Rodrigo, o mar sempre foi uma paixão, desde criança.

O principal objetivo dele com a viagem era acumular milhas náuticas para poder pleitear a habilitaçã­o de ca- pitão junto à Marinha.

Ele estava se profission­alizando e queria muito viver disso. Por isso, para ele, essa viagem foi cercada de uma expectativ­a muito grande.

Mas o que era para ser uma grande aventura se transformo­u em desventura. Rodrigo chegou a Cabo Verde cerca de 20 dias depois de ter saído de Natal, de onde o veleiro partiu do Brasil.

Ele me telefonou assim que chegou a Cabo Verde, estava tudo bem. Ligou no segundo dia, mas não ligou no terceiro. Não era o costume dele. Toda vez que ele estava em solo, ele nos telefonava todos os dias.

Liguei na marina onde eles tinham aportado e me disseram que Rodrigo e os colegas tinham sido levados para o calabouço da Polícia Judiciária. E que eles estavam presos.

Foi como se o meu chão se abrisse. Eu não tinha a menor noção de como lidar com aquilo. Imagine o que é conseguir um advogado em Cabo Verde, um país do qual nem sequer eu tinha ouvido falar antes de meu filho ir para lá.

Os meses seguintes foram uma odisseia. Eu e meu marido, João Dantas, pensávamos que o caso se resolveria em algumas semanas ou meses. Mas ficamos mais de um ano em Cabo Verde.

Nos primeiros quatro meses, Rodrigo ficou fora da prisão. Como não estavam no barco no momento do flagrante, ele e Daniel Dantas foram soltos. Mas, depois, o Ministério Público entendeu que eles deveriam ser presos porque havia risco de fuga.

Quando ele voltou para a cadeia, eu e meu marido íamos visitar o nosso filho duas vezes por semana —às quintas

e aos sábados—e nós podíamos ficar com ele por uma hora e 40 minutos.

Antes de entrar, nós e a comida que levávamos passavam por uma revista rigorosa. Era um negócio meio agressivo, né? Um negócio constrange­dor. Mas você nem pensa nisso porque só quer ver e abraçar o seu filho.

Mas, no fundo, isso tudo parece um pesadelo em que você nunca acorda.

Você sabe que o seu filho é inocente, mas tem que suportar ele pagando pena em uma prisão, convivendo em local insalubre, sem higiene. Não falo nem da comida, porque num país em que tantas famílias nem sequer têm o que comer, falar da qualidade da comida até perde o sentido.

Entre 2017 e 2018, nós moramos em cinco imóveis diferentes. Em uma das casas, fomos convidados a sair depois que o dono descobriu que nós éramos pais de um dos velejadore­s brasileiro­s.

Enfrentamo­s preconceit­o até na rua. Já fui chamada de mãe de traficante. É o tipo de coisa que marca muito, você ver o seu filho tachado por uma coisa que ele não fez.

Por outro lado, fomos acolhidos por parte da comunidade de São Vicente, que or- ganizou missas e atos de solidaried­ade.

Nós e os pais de Daniel Guerra e Daniel Dantas nos tornamos uma família unida em torno de um só objetivo, provar a inocência deles. Choramos muitas vezes juntos.

É muito difícil quando você sai da visita [da cadeia], senta na calçada e fica se perguntand­o o porquê de passar por tudo aquilo. Hoje, não perguntamo­s mais por que, e sim para que, o que nós vamos tirar de lição dessa situação.

Quando houve o julgamento, achamos que tudo ia se resolver, que eles iam ser inocentado­s. Era uma tripulação de jovens sem antecedent­es, sem armas e sem dinheiro.

Eles tinham um contrato para levar para o outro lado do oceano um barco que não era deles. Ninguém compreende por que a Polícia Judiciária não indiciou o dono do barco. Nem por que a Justiça não levou em conta as testemunha­s brasileira­s e o inquérito feito pela Polícia Federal do Brasil, que os inocentou.

Nesta quinta, nem estávamos esperando que ele já fosse solto. Meu marido foi visitá-lo —eu voltei para o Brasil há dois meses—, e soube que ele sairia da cadeia.

Foi uma grande surpresa, um presente para a gente. O que eu mais quero agora é que ele volte para casa.

Também espero que logo meu filho possa erguer as velas e voltar para o mar. Ele se deve essa experiênci­a, já que foi para uma travessia oceânica que nem sequer concluiu.

Meu desejo é que Rodrigo volte como mais experiênci­a e com mais garra para continuar realizando seus sonhos.

Mas eu sei que vou olhar para trás e ver que toda essa história foi um buraco na vida de meu filho.

“Em uma das casas, fomos convidados a sair depois que o dono descobriu que nós éramos pais de um dos velejadore­s brasileiro­s. Enfrentamo­s preconceit­o até na rua. Já fui chamada de mãe de traficante Aniete Dantas mãe do velejador Rodrigo Dantas

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Raul Spinasse/Folhapress Aniete, mãe do velejador Rodrigo, preso em Cabo Verde e solto na quinta

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