Folha de S.Paulo

Filme sobre Mariana prenuncia certeza sobre nova tragédia

Documentár­io ainda inédito sobre a tragédia de Mariana chega neste ano aos cinemas prevendo o estouro da barragem que arrasou Brumadinho

- Naief Haddad

Em setembro de 2016, Carlos Eduardo Ferreira Pinto, promotor do Ministério Público de Minas Gerais, deu entrevista à equipe do documentár­io “Amigo do Rei”. Àquela altura, ele integrava a força-tarefa responsáve­l pela investigaç­ão do rompimento da barragem de Fundão, na cidade mineira de Mariana.

Além de destruir grande parte do bairro de Bento Rodrigues, matando 19 pessoas, o vazamento de rejeitos poluiu o rio Doce até o litoral do Espírito Santo, tornando esse episódio o maior desastre ambiental da história do Brasil.

Para quem não se lembrava, Fundão pertence à Samarco, uma empresa controlada pela Vale e pela anglo-australian­a BHP Billiton.

“A pergunta não é se vai acontecer um novo desastre”, disse Ferreira Pinto ao filme, enfatizand­o a palavra “se”. Ao lado de uma parede coberta de lama em Bento Rodrigues, ele continuou. “A pergunta é quando vai acontecer um novo desastre”.

Diante de outro rompimento de barragem, desta vez em Brumadinho, no mesmo estado, o impacto da declaração do promotor se fortalece.

Visto em primeira mão por este repórter na semana passada, “Amigo do Rei” é dirigido por André D’Elia, que tem se especializ­ado em filmes de temática socioambie­ntal.

O cineasta concluiu o corte final do seu documentár­io sobre Mariana em 24 de janeiro —faltam só ajustes de finalizaçã­o. No dia seguinte, numa terrível coincidênc­ia, o país soube de uma nova tragédia, agora em barragem da Vale em Brumadinho. Até a conclusão desta edição, o desastre já contabiliz­ava 157 mortos.

Ao longo de 2h20, “Amigo do Rei” aponta algumas das razões para o acidente em Mariana e mostra a escalada da negligênci­a depois do episódio. Para tanto, D’Elia ouviu especialis­tas de diversas áreas, como geologia, engenharia civil e biologia.

Esses comentário­s deixam claro que as más notícias de Mariana em nada contribuír­am para reforçar a segurança das barragens. Não houve mobilizaçã­o efetiva das empresas de mineração, tampouco do poder público. Experts veem até retrocesso em alguns aspectos. Ou seja, não é surpresa que tenha havido Brumadinho.

O diretor também entrou em contato com as assessoria­s da direção da Samarco e do prefeito de Mariana, mas não obteve resposta.

Com estreia nos cinemas prevista para o segundo semestre deste ano, o filme também registra a situação dramática de muitas das vítimas, tanto as que moravam em Bento Rodrigues quanto as que vivem em cidades às margens do rio Doce.

“Eu achava que ninguém ia ligar para o meu filme. Quem assistiria a um documentár­io sobre política e mineração? De repente, acontece isso [o rompimento da barragem de Brumadinho]”, afirma. “Para o lançamento do filme, o fato é bom, não nego. Mas não há como ficar feliz com o que aconteceu”, diz.

Com uma pequena equi- pe, D’Elia realizou seis expedições às regiões afetadas em Minas Gerais e Espírito Santo entre o início de 2016 e os primeiros meses de 2017.

Nessa fase de filmagens, ele se espantou ao chegar pela primeira vez aonde existia a vila de Bento Rodrigues. “Fiquei chocado com o cenário. Parecia que uma bomba atômica havia explodido ali”, lembra. “Cheguei a jogar os equipament­os no chão porque senti que a câmera não seria suficiente para captar o tamanho da destruição.”

Nada se compara, evidenteme­nte, a botar os pés no lugar. Mas é preciso reconhecer o vigor das imagens de “Amigo do Rei”. Os cenários mudam, mas a cor não. A lama está impregnada nas paredes destruídas, nos espaços onde existiam quintais, nos peixes mortos do rio Doce.

Um dos principais objetivos do diretor era gravar o depoimento de Priscila Monteiro, jovem que morava na vila e que por muito pouco não morreu sob o mar de resíduos.

D’Elia enviou várias mensagens a ela, mas não obteve resposta. Ao viajar a Bento Rodrigues para gravar entrevista com outro sobreviven­te, encontrou Monteiro por acaso.

No filme, ela conta que estava grávida quando houve a tragédia, o que a levou a perder o bebê. Sua sobrinha também morreu na ocasião.

“Enquanto tiver terra nesse lugar, vou pisar aqui”, diz Monteiro. O cineasta conta que vários ex-moradores continuam frequentan­do o local. “Há uma questão particular que não cabe a mim julgar, mas essa ida deles até lá impression­a. O que mais me chocou foram esses pontos sem resposta”.

Mistérios apenas pairam sobre o filme. Já as denúncias têm presença ostensiva. D’Elia é adepto do que chama de “cinema pedrada”. “É quando o cinema se torna uma ferramenta de mobilizaçã­o social e articulaçã­o politica. A arte deve se relacionar com a realidade e existir com o objetivo de promover a mudança no mundo real”, afirma, ao explicar o seu conceito.

Seus três longas anteriores, como “Ser Tão Velho Cerrado” (2018), adotaram essa linha contundent­e. Não há, porém, qualquer ligação partidária, diz D’Elia.

“Amigo do Rei” nasceu como parte de um projeto de informação ambiental do Ministério Público de Minas Gerais. O financiame­nto de R$ 800 mil é resultado de um TAC (termo de ajuste de conduta), cumprido por uma empresa mineira que havia sido autuada pela Justiça.

Apesar da ligação com os promotores, o diretor diz que teve autonomia para a edição do filme. “O MP não poderia fazer uso político de um instrument­o de comunicaçã­o.”

Se não aparece sob esse viés, a política surge de outras formas. Em “Amigo do Rei”, D’Elia introduziu uma breve narrativa ficcional, que tem o parlamenta­r Rey Naldo (Luciano Chirolli) como protagonis­ta. É ele quem representa as ligações promíscuas entre a classe política e os empresário­s da mineração.

Rey Naldo é inspirado em uma série de políticos. Caberá ao espectador escolher quem deve vestir a carapuça.

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Divulgação Casa invadida pela lema em Mariana (MG) que integra ensaio visual de Christian Cravo
 ??  ?? André D’elia, 32 Nascido em São Paulo, começou no cinema fazendo assistênci­a de direção em produções sobre skate. A partir daí, passou a se dedicar a documentár­ios de temática ambiental. Seu primeiro longa foi ‘Belo Monte - Anúncio de uma Guerra’(2011), que levou quatro anos para ser feito. Nos anos seguintes, dirigiu ‘A Lei da Água’ (2015) e ‘Ser Tão Velho Cerrado’ (2018). Também é responsáve­l por videoclipe­s como ‘Demarcação Já’ (2017). Comanda a produtora Cinedelia, que tem feito trabalhos em parceria com a O2
André D’elia, 32 Nascido em São Paulo, começou no cinema fazendo assistênci­a de direção em produções sobre skate. A partir daí, passou a se dedicar a documentár­ios de temática ambiental. Seu primeiro longa foi ‘Belo Monte - Anúncio de uma Guerra’(2011), que levou quatro anos para ser feito. Nos anos seguintes, dirigiu ‘A Lei da Água’ (2015) e ‘Ser Tão Velho Cerrado’ (2018). Também é responsáve­l por videoclipe­s como ‘Demarcação Já’ (2017). Comanda a produtora Cinedelia, que tem feito trabalhos em parceria com a O2

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