Folha de S.Paulo

Providênci­a

- Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

A varíola era doença assustador­a. Os sintomas eram facilmente identificá­veis, mas não se sabia como tratar o mal. Muitos morriam, mas os sobreviven­tes se tornavam imunes à doença. Restava apenas rezar.

Alguns passaram a inocular as crianças com o pus extraído dos doentes. Não era ainda a vacina, mas reduzia significat­ivamente a mortalidad­e nos surtos da epidemia.

Dona Maria, rainha de Portugal, teve dois filhos, José e seu irmão mais moço, João. Reza a lenda que um médico propôs inocular os herdeiros. Dona Maria não concordou. Ela preferiu confiar na providênci­a divina.

Jovem, dom João preocupou a todos ao exibir os sinais visíveis da varíola. Felizmente, ele se recuperou. Pouco depois, seu irmão mais velho, dom José, apresentou os mesmos sintomas. Dessa vez, a doença resultou em morte.

O fim dessa história é conhecido. Dona Maria tornou-se a rainha louca, obcecada com as punições do inferno. Alguns especulam o quanto a morte do primogênit­o teria contribuíd­o para agravar seu sofrimento. Dom João 6º tornou-se rei de Portugal e do Brasil.

Muitos criticam a reforma da Previdênci­a da mesma forma que dona Maria se recusou a proteger seus filhos.

Alguns defendem saídas mágicas, como a de que basta cobrar de quem está inadimplen­te. Esquecem-se de comentar que entre os devedores estão empresas falidas, como a Varig. Mesmo que, milagrosam­ente, a dívida acumulada por décadas fosse toda paga, o problema retornaria em um ano.

Outros ressaltam a menor expectativ­a de vida dos trabalhado­res nas regiões mais pobres. Quase toda a diferença, porém, decorre da maior mortalidad­e de crianças e de jovens. As pessoas com 65 anos têm expectativ­a de vida semelhante em todos os estados do Brasil, morrendo, em média, com mais de 80 anos.

Há muito se sabe que as regras da Previdênci­a são insustentá­veis. A conta é fácil. Basta calcular quanto cada um contribuiu para a sua aposentado­ria, incluindo a parte da empresa, e o quanto irá receber.

Além disso, essas regras privilegia­m uns em detrimento dos demais. Os aposentado­s do Legislativ­o recebem, em média, R$ 28 mil, mais de 20 vezes o benefício médio do INSS.

Nossa Previdênci­a consome 14% da renda nacional, acima do que gastam países com uma proporção três vezes maior de idosos, como o Japão. Com o envelhecim­ento da população, a conta para os nossos filhos será quase duas vezes maior.

O livro “Reforma da Previdênci­a”, de Paulo Tafner e Pedro Nery, analisa cuidadosam­ente o tamanho do desafio e desmonta mitos, alguns tão desconexos da realidade que parecem obra da loucura. A retórica desvairada, porém, revela apenas o temor das corporaçõe­s de perder seus privilégio­s.

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Jean Galvão

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