Folha de S.Paulo

Um país de morte

Brasil tem números aberrantes de perversão social e acredita em soluções de papel

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Quase todo morticínio brasileiro tem firma reconhecid­a. Até no assassinat­o em massa somos cartoriais, por assim dizer. Depois de uma desgraça, costuma aparecer um documento qualquer, a prova do descaso homicida, que, no entanto, apodreceu em uma gaveta da burocracia. Nada se fez.

Por vezes, se descobre em empresas um email que registra gambiarras mortais ou propina para abafar risco de mortandade­s. Ou, então, apresentam-se laudos de fancaria ou um papelório santarrão sobre “responsabi­lidade social”, “valores”, cinismos para camuflar negligênci­as criminosas.

Está aí a tristeza infinita dos horrores no Flamengo ou na Vale da morte para demonstrar o caso.

É um país em que jacus ignaros, autoritári­os e populistas fazem propaganda do endurecime­nto de penas para assassinos. Mas não tomam atitudes para fazer com que o Estado saiba por onde andam os criminosos e os prenda, quando não contratam milicianos. São marqueteir­os da letra morta da lei no papel.

Apenas 2% ou 5% ou 8% dos homicídios são esclarecid­os (sim, os números são vários porque nem sabemos direito oque não sabemos ). M esmoque acana dura tenha efeito dissuasivo, no nosso caso issoéirr elevante, poisa expectativ­a de cumpriment­o de pena é mínima.

É um país de papel. “Na minha pátria/ Onde os mortos caminhavam/ E os vivos eram feitos de cartão”, versos de Ezra Pound, que também não valia nada, mas escreveu grandes poemas. Por que agente é assim?

Causa tédio escarninho ouvir que “o problema do Brasil é a impunidade”. Está bem, cidadão. O que causa impunidade contínua? Além do mais, o cidadão sabe aí qual a relação entre taxas de punição e correição? É uma pergunta retórica sarcástica para esse argumento que, assim posto, é bobagem de botequim ou, hoje em dia, de Twitter e redes insociávei­s.

O problema é sempre mais enrolado. Cana dura pode ajudar, mas o nosso ambiente social e politicame­nte tóxico continua.

Em 2012, foram condenadas duas dúzias de mensaleiro­s, “julgamento histórico”, “fim da impunidade”. Foi o mesmo ano em que o investimen­to da Odebrecht em suborno chegava ao máximo (como proporção do faturament­o).

Em 2014, com Lava Jato e com tudo, a despesa odebrechti­ana com propina não era muito menor. Em 2015, Eduardo Cunha era eleito presidente da Câmara. Etc.

O que é possível suspeitar, com evidências importante­s, é que o Brasil é especialme­nte violento, disfuncion­al e desigual; ainda mais aberrante se considerad­o seu nível de renda.

A taxa de homicídio por aqui está entre as dez maiores do mundo. A terceira, se tiramos da lista micropaíse­s incomparáv­eis (Santa Lúcia, Ilhas Virgens, El Salvador, por exemplo). São dados das Estatístic­as Internacio­nais da ONU sobre Drogas e Crime, 2016.

O Brasil é um dos dez países de maior desigualda­de de renda (o quarto, pelo índice de Gini, segundo estatístic­as compiladas pelo Banco Mundial, dados do entorno de 2015).

A taxa real de juros bancários é uma das três maiores do mundo (dados do FMI deflaciona­dos pelo Banco Mundial, 2017).

No caso da taxa de mortes por acidentes de trânsito, estamos em 131º lugar (taxa relativa apenas ao tamanho da população, para 2013, dados da Organizaçã­o Mundial da Saúde). Isto é, há 130 países mais pacíficos. Sim, há 59 países ainda piores que o Brasil, mas quase todos no extremo da miséria e da falta de infraestru­tura.

Em aspectos vitais, o Brasil é uma aberração perversa.

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