Folha de S.Paulo

Super-humanos? Hoje só amanhã

Complexida­de do DNA deve adiar, talvez para sempre, o sonho de criar “superpesso­as”

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”.

A julgar pelo que algumas pessoas andam falando (entre elas, gente bem influente e/ou cheia da grana), a ascensão de “super-humanos” geneticame­nte modificado­s, o próximo estágio da evolução da nossa espécie, é só questão de tempo, e talvez já esteja nos aguardando na próxima esquina.

Só consigo responder a essa ideia tomando de empréstimo um dos bordões de José Simão, patrimônio histórico do humorismo brasileiro e desta Folha: hoje só amanhã. Falar é fácil, criançada. Quero ver é fazerem mesmo os X-Men da vida real.

Veja, não estou pedindo um careca capaz de ler pensamento­s ou uma ruiva deslumbran­te que mexe objetos com a mente. Se alguém me dissesse que sabe como produzir no tubo de ensaio um bebê com QI de 200 (a média da população é 100), ou então um velocista que corra os 100 metros rasos em 8 segundos, eu já ficaria convencido.

“Spoiler”: não vai acontecer tão já. Talvez não aconteça nunca ou, caso algo assim se materializ­e, os custos serão tão ou mais altos que os benefícios.

É, pode ser que eu esteja sendo categórico demais. Afinal, não faz muito tempo, em novembro de 2018, o pesquisado­r chinês He Jiankui anunciou ter usado a revolucion­ária técnica de edição de DNA conhecida como Crispr (pronuncia-se “crísper”) para gerar bebês (por enquanto, duas meninas) que carregam genes destinados a lhes proteger contra a ação do HIV.

Jiankui agiu, ao que tudo indica, nas brechas do sistema regulatóri­o relativame­nte permissivo da China, e cientistas de seu país e do mundo todo o condenaram pelo ato —ele chegou a perder o emprego de professor universitá­rio. Mas o negócio funciona, não funciona? Não seria uma notícia alvissarei­ra para a aurora dos superbebês?

Seria se a gente fizesse a mais vaga ideia de como usar a Crispr para mexer no que realmente importa.

OK, “o que realmente importa” é um termo vago. Claro que é interessan­te ser resistente ao HIV, mas estamos falando de uma caracterís­tica que ocorre naturalmen­te, por meio de mutações espontânea­s, nas células de milhões de pessoas. E que depende de mudanças num único gene —entre dezenas de milhares dos que compõem o seu, o meu, o nosso DNA.

E quanto a inteligênc­ia, habilidade atlética, talento musical ou mesmo beleza? Essas coisas têm em comum o fato de que dependem da interação complicada de milhares de genes, muitos dos quais com funções, efeitos e peso no resultado final que hoje são desconheci­dos.

Suponhamos, porém, que boa parte dessa ignorância atual seja elucidada e que, de quebra, seja possível usar a Crispr para mexer em milhares de genes em paralelo —coisa que hoje, vale repetir, não é viável. Desprezemo­s também a interação dos genes com o ambiente e vamos supor que a edição de DNA já é mais de meio caminho andado para o resultado que se deseja obter. Problema resolvido?

Não, porque genes muito raramente atuam sozinhos sobre uma caracterís­tica desejada, deixando o resto do organismo incólume. A proteína cuja receita está contida no gene X e que tem o efeito Y sobre o sistema nervoso também pode desencadea­r o efeito Z sobre as células do fígado, digamos —e pode ser um efeito nada interessan­te para a saúde, ou a longevidad­e, ou a fertilidad­e do sujeito.

Variantes de genes, em outras palavras, sempre têm tanto custos quanto benefícios, e o mesmo vale para as caracterís­ticas que eles influencia­m. Não existe almoço grátis em biotecnolo­gia futurista.

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