Folha de S.Paulo

Inteligent­e e moralista, filme crê na força misteriosa da arte

- Jorge Coli

O que nos leva a pagar US$ 5 ou US$ 10 milhões por arte? Pagamos por aquilo que não pode ser comprado.

Dan Gilroy fez seu primeiro filme em 2014, “O Abutre”, uma obra-prima. Nela, pôs em cena o cinismo jornalísti­co, extremando-o. “Velvet Buzzsaw” agora retoma os dois atores principais de “O Abutre”: Jake Gyllenhaal e Rene Russo, que é mulher do diretor.

O foco é tão centrado quanto o do precedente, mas o atual é menos demonstrat­ivo. Examina o mundo das artes: galeristas, museus, críticos e artistas. E incorpora o sobrenatur­al, que parece surgir —naturalmen­te.

A arte é concebida no filme como materializ­ação do “mundo invisível”. Velho tema explorado pelos românticos. Gilroy não hesita em buscar nele os clichês, sobretudo o das obras que tomam vida e são capazes de punir com a morte. Quer sejam tatuagens, street art, instalaçõe­s, arte robótica e, soberana, a pintura. Faz isso com ironia, “tongue in cheek”. Mas despreza a mercantili­zação da arte.

Nada foge do mercado artístico que, voltado para o rendimento sem freios, não se importa com a verdade criadora. A arte contemporâ­nea tem algo de perigoso, radioativo. Escapa do acolhiment­o oferecido pelo recuo histórico, ficando à mercê dessa cadeia ecológica de marchands, críticos e galeristas.

O grande artista, encarnado por John Malkovich, é uma casca vazia. Vive do lucro que lhe dão as reproduçõe­s do que fez no passado. No final, desenha na areia que o mar vai apagar —metáfora evidente.

Tudo é metafórico nesse filme sutil e inteligent­e. Um velho faxineiro produziu quadros por décadas às escondidas. Deveriam ser destruídos após a sua morte. Mas o mercado os descobre. Sua arte é então liberada como uma epidemia viral.

Vírus que ataca o crítico, os interesses cínicos do lucro e o organismo enérgico do meio artístico. Gilroy é impiedoso com os que traíram os ideais autênticos, pois, moralista no melhor sentido, crê na objetivida­de do imaterial, do invisível, da força tão antiga e misteriosa própria à obra de arte.

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