Folha de S.Paulo

Conversa ao acaso

Admitir que a lei da gravidade é neutra é um exercício de humildade

- Cristovão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

No início dos anos 1970, participei de uma expedição de 30 dias à ilha de Superagui, então um recanto intocado no litoral do Paraná, a bordo de uma pequena baleeira chamada muito adequadame­nte Anarco, sob a liderança do barbudo W. Rio Apa (1925-2016), então meu guru lítero-filosófico.

Chegando lá, metade da tripulação desembarco­u e avançou por terra, ao longo da belíssima praia Deserta, enquanto eu, sentindo-me no coração das trevas, segui com outros marujos pelo longo e estreito canal de Ararapira, nome do lugarejo onde nos reencontra­ríamos adiante, já na fronteira de São Paulo. Vai o lugar-comum: uma viagem inesquecív­el.

E também marcante por uma leitura especial (sim, sobrava tempo para ler). Em vez de levar Rousseau, o profeta da vida natural, como talvez fosse apropriado, carreguei comigo “O Acaso e a Necessidad­e”, do francês Jacques Monod (1910-1976), então um recente prêmio Nobel de medicina e best-seller na Europa.

Seguindo a memória afetiva, relembro do que me ficou na cabeça. Primeiro, o conceito biológico de teleologia, o fato de que todo ser vivo se dirige à sua própria réplica —ele quer ser outro ser vivo. E segundo: essa propriedad­e celular intrínseca não pode ser automatica­mente transporta­da para o cosmos, o mundo da natureza ou da cultura como imanências irresistív­eis, sem se recorrer à mágica, à epifania ou à Revelação.

A história (para ficar neste campo mais tangível) é um jogo intermináv­el entre a necessidad­e e o acaso, sob pressões sociais ponderávei­s, mas nada indica que ela se destina necessaria­mente a algum lugar predetermi­nado, seja o paraíso cristão (a primeira grande narrativa teleológic­a do mundo, que nos arrancou da circularid­ade do mundo antigo), seja o paraíso terrestre (a adaptação moderna e “científica” do mito de origem).

Um e outro são, em última instância, objetos de fé, que, quando quer mover montanhas, costuma matar gente pelo caminho.

Sabemos bem o que é a necessidad­e; já o acaso é uma instância dura de engolir. Admitir que a lei da gravidade é neutra e que não há explicação transcende­nte quando uma tábua nos cai à cabeça é um exercício de humildade às vezes insuportáv­el.

Um parêntese literário: a ideia de destino (se aconteceu, é porque tinha de acontecer) foi ganhando tonalidade­s distintas (o inexorável, o trágico, o conspirati­vo, o inexplicáv­el) até se submeter ao jogo de causa e efeito perfeitame­nte observávei­s da consciênci­a moderna, para que, enfim, faça sentido.

Na literatura, curiosamen­te, o acaso enfrenta limites que não observa na vida real. Machado de Assis, na sua célebre crítica ao realismo de “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, reclama: se a criada Juliana não encontra, por acaso, as tais cartas compromete­doras, “estava acabado o romance”.

Não por acaso (sem trocadilho), Machado não foi um escritor especialme­nte fabulador ( fábula é sempre acaso e coincidênc­ia), ou um ideólogo do realismo, como Eça; sua força narrativa era mais intimament­e reflexiva, antecipand­o tendências do século 20.

Pensemos na força política do acaso. Como no futebol, o “se” não entra em campo, mas sem ele é impossível pensar. Observe-se o fenômeno Bolsonaro. O pensamento à esquerda tende a ver neste governo o ápice de um articulado movimento cósmico-conspirado­r-global das trevas de direita, que une na mesma maçonaria do pequeno e rancoroso desemprega­do branco até as insídias do judiciário e das finanças.

É o equivalent­e especular do também delirante marxismo cultural, uma gigantesca onda spengleria­na que paira no mundo inteiro a inocular veneno ideológico em cabeças e mentes de modo a produzir a decadência final do Ocidente.

Tirando a cabeça das nuvens: “se” o governo Dilma, por sua própria determinaç­ão e vontade férreas, não tivesse sido o monumental desastre econômico e político que foi (o maior recuo do PIB brasileiro em mais de 60 anos), as trevas se ergueriam do túmulo para nos assombrar?

Mesmo assim, o capricho do acaso pode empurrar as pedras do dominó. Exemplo: uma tentativa de assassinat­o no meio do caminho e a campanha súbita se embaralha, reagrupand­o valores e desejos, num instante total de polos negativos.

E, sob a âncora econômica (sim, a pauta liberal-desestatiz­ante faz bastante sentido no Brasil de hoje), surge um inacreditá­vel triunvirat­o cultural do fanatismo e do atraso (Ernesto-Damares-Vélez), mal equilibran­do-se entre a alucinação, a desintelig­ência emocional e a incompetên­cia. Mas aqui o acaso é inocente.

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Vânia Medeiros

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