Folha de S.Paulo

Idas e vindas da democracia

- Por Christian Schwartz Doutor em história social (USP/Cambridge), é jornalista e tradutor Ilustração Alex Kidd Artista gráfico e ilustrador

Como o Brasil do ‘não me representa’ passou a ser governado por Bolsonaro

Autor confronta a tese de uma cisão identitári­a no eleitorado e afirma que Jair Bolsonaro ganhou as eleições pela união de camadas médias que, como os políticos, veem a educação como algo ornamental ou pragmático

Há uma pergunta que, respondida em toda a sua complexida­de, tem o potencial de iluminar muito do que se passou na política brasileira recentemen­te. É a seguinte: por que caminhos (ou diabos) o “Não me representa” dos protestos de junho de 2013 rapidament­e virou o “Mito! Mito!” que anima o comício permanente de Jair Bolsonaro —e deve ser, ao que parece, uma espécie de grito de guerra deste governo tribal?

Num texto recente, a jornalista e escritora Eliane Brum lançou a tese de que, segundo ela pela primeira vez na história do Brasil, o presidente é um “homem mediano”. O argumento avança em três movimentos.

Expõe, primeirame­nte, o que seria um contraste: ao contrário de todos os seus antecessor­es no cargo (o texto silencia, curiosamen­te, sobre a única antecessor­a, nem uma só vez mencionada), Bolsonaro careceria de excepciona­lidade. “Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepciona­l. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiro­s”, escreve a jornalista.

Nas duas etapas seguintes, reafirma a explicação padrão de nossos intelectua­is ditos progressis­tas para o fenômeno, este sim inédito, de um presidente de extrema direita. Começa pela assertiva de que “a posição do homem heterossex­ual no topo da hierarquia nunca foi tão questionad­a como nos últimos anos”; defende, a seguir, que os governos anteriores ao do interino Michel Temer teriam feito avançar, em grau sem precedente­s, direitos de gênero, classe e, com especial destaque, raça. “O reconhecim­ento destes direitos e a ampliação do acesso dos negros a espaços até então reservados aos brancos teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetism­o”, reflete Brum.

Já em relativa contradiçã­o com o movimento inicial, quando falava de “ampla camada de brasileiro­s”, o texto prossegue: “O novo presidente representa, principalm­ente, o brasileiro que nos últimos anos sentiu que perdeu privilégio­s”. No estilo peculiar de sua prosa, Brum oferece uma imagem contundent­e desse brasileiro: “Macho. Branco. Sujeito Homem”.

Para a jornalista, foi apenas circunstan­cial que Bolsonaro tenha amealhado milhões de votos de mulheres e de uma parcela expressiva da população que poderia se autodeclar­ar preta ou parda, conforme os critérios cotistas (ainda) em vigor.

Brum tem razão ao afirmar que Bolsonaro “não é representa­nte apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo”. Parece escapar à autora, porém, que não se adota uma “visão de mundo” dessa radicalida­de apenas circunstan­cialmente —como ela sugere que teriam feito as eleitoras de Bolsonaro.

Isso, por si só, já bastaria para desautoriz­ar a tese de uma revolta do homem branco, rico e heterossex­ual como motor da ascensão da extrema direita. E, no entanto, já sem o pudor de meias palavras como “mediano”, de conotação mais branda, Brum chega a uma explicação própria para o grito de guerra bolsonaris­ta: “É assim que um homem medíocre como Bolsonaro vira ‘mito’. Ameaçados de perder a diferença que lhes garante privilégio­s que já não podem ter, Bolsonaro e seus seguidores [...] afirmam sua mediocrida­de como valor”.

Talvez fosse o caso de, antes, perguntar se o que Bolsonaro representa não é a síntese de algumas caracterís­ticas sociais e comportame­ntais marcantes dos brasileiro­s —e brasileira­s—, especialme­nte em sua relação sempre atribulada com a ideia de democracia representa­tiva.

Em suma: por que nós —num amálgama complexo, como mostraram as pesquisas de intenção de voto em 2018, no qual se misturaram, em proporções variadas, eles e elas, pobres e semipobres, além dos ricos, e ainda pretos, pardos e brancos— decidimos por maioria eleitoral que a triste figura de Bolsonaro, aos brados de “Mito! Mito!”, deveria preencher o vazio do “Não me representa”?

Mas voltemos à falta de excepciona­lidade de Bolsonaro. O que mais chama a atenção, e logo na primeira frase do texto de Brum, é que essa ideia venha fortemente acoplada a outra, a de novidade: “Desde 1º de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto”, afirma o artigo. “Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar”, analisa a jornalista, “quase 58 milhões de brasileiro­s escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos.”

Afora a ideia facilmente contestáve­l de que a democracia seja esse governo dos melhores, e voltaremos a isso, também se poderia objetar, quanto à observação de Brum, que votar em alguém parecido com o tio ou o primo —note-se: num homem feito fulano ou sicrano e, por extensão, feito Bolsonaro— não haverá de ser a mesma coisa que votar em alguém parecido consigo mesmo para vastos contingent­es do eleitorado, mulheres sobretudo.

O comentário seguinte da jornalista, porém, é que merece escrutínio mais detalhado. Na construção de sua persona pública de “homem mediano”, o próprio Bolsonaro muitas vezes insistiu no fato de que, como deputado do baixo clero, não tinha prestígio. “Eu não sou ninguém aqui”, afirmou o agora presidente em discurso no plenário da Câmara em 2011, destaca Brum, como ilustração ao próprio argumento.

Dá-se, assim, mais uma volta ao parafuso: o(a) eleitor(a) de Bolsonaro, à semelhança do eleito, reaparece agora em sua encarnação definitiva —a do proverbial zé-ninguém (quem sabe também a de uma maria-vai-com-as-outras?).

Seria uma imagem completame­nte desabonado­ra, não fosse sua surpreende­nte semelhança com a caracteriz­ação que, em livro-manifesto de 2017 (“Só Mais um Esforço”, publicado pelo selo Três Estrelas, do Grupo Folha), o filósofo Vladimir Safatle, colunista deste jornal e voz incontorná­vel da esquerda, registrou como a do manifestan­te típico das chamadas Jornadas de Junho de 2013.

No relato de Safatle, um desses manifestan­tes, respondend­o a repórter que pedia para anotar seu nome depois de uma rápida entrevista de rua, teria dito: “Anota aí: eu [não] sou ninguém”. “Por mais paradoxal que possa inicialmen­te parecer”, comenta então o autor, “‘Eu [não] sou ninguém’ é a mais forte de todas as armas políticas. [...] é, na verdade, a forma contraída de: ‘Eu sou o que você não nomeia e não consegue representa­r’”. É quase inevitável, aqui, a lembrança da alcunha pela qual Bolsonaro passou a ser referido em fóruns de esquerda (inclusive no texto de Brum): “o coiso”, aquele que não tem nome, cuja representa­ção extrapola os limites de certo imaginário político.

Ironicamen­te presciente, o manifesto de Safatle conclui, ainda sobre os protestos de 2013: “Uma insurreiçã­o não é necessaria­mente a emergência de um novo sujeito político. A insurreiçã­o pode ser a explosão bruta da revolta, mas, para que essa revolta forje um su- jeito emergente, é necessário ainda mais um esforço”.

Todavia, como em outras partes do mundo, também aqui quem ainda guardava um último fôlego eram a extrema direita e seu candidato zé-ninguém —e talvez com essa o filósofo não contasse (embora deva-se conceder que, ao propor um programa de ação, Safatle pensava a longo prazo, não eleitoralm­ente).

Até o momento, as versões da esquerda para o desarranjo político recente ora partem de premissas ruins —políticas identitári­as provocaria­m “grande impacto” no voto por ressentime­nto de uma suposta massa de privilegia­dos (Brum), soluções revolucion­árias teriam suficiente apelo no Brasil de hoje (Safatle)—, ora incorrem em erros conceituai­s básicos, como este, novamente no texto de Brum: “[...] a ideia de que aquele que é considerad­o o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia”.

Se há novidade em Bolsonaro, não está no fato de ele ser mais um produto ruim da vontade popular.

A atual visibilida­de da figura a que se poderia chamar ‘o ignorante empoderado’ oferece a chance de uma revisão de nossos próprios problemas com a democracia representa­tiva

Talvez o problema de fundo seja precisamen­te a expectativ­a em torno das virtudes (e as há) da democracia representa­tiva —a ponto de sua mais progressis­ta versão, a social-democracia europeia, inexplicav­elmente merecer o desprezo de certa esquerda delirante.

Num dos bons livros lançados recentemen­te sobre a atual crise do sistema representa­tivo, “Como a Democracia Chega ao Fim” (ed. Todavia), o professor David Runciman, da Universida­de de Cambridge, tratou de repensar, à luz de uma história de mais de dois séculos, os limites desse arranjo político.

(Meses antes da chegada do livro ao Brasil, em entrevista à Ilustríssi­ma, Runciman comentava a eleição de Donald Trump, nos EUA, como típico exemplo da prevalênci­a, na política atual, da mentira sobre a hipocrisia. E, intuindo talvez que as eleições brasileira­s não escapariam à sina de um candidato populista à imagem de Trump, vaticinava: “Acho melhor ser governado por adultos hipócritas do que por crianças mentirosas, mas, infelizmen­te, não tem sido essa a visão prepondera­nte nas democracia­s contemporâ­neas”. Deu Bolsonaro.)

No final do ano passado, Runciman voltou à carga em conferênci­a intitulada “Democracy for young people” (democracia para jovens) e veiculada no podcast Talking Politics. Ali, reelabora seus argumentos —além de, como já fizera no livro, avançar propostas para “consertar” o sistema representa­tivo em sua hora mais difícil.

A mais polêmica delas, que ganhou as páginas dos jornais ingleses, é a de baixar a idade mínima dos eleitores para seis anos. Sim, logo que entrassem na escola primária, e portanto passassem a participar oficialmen­te —como cidadãs letradas,

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Ilustração Alex Kidd
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