Idas e vindas da democracia
Como o Brasil do ‘não me representa’ passou a ser governado por Bolsonaro
Autor confronta a tese de uma cisão identitária no eleitorado e afirma que Jair Bolsonaro ganhou as eleições pela união de camadas médias que, como os políticos, veem a educação como algo ornamental ou pragmático
Há uma pergunta que, respondida em toda a sua complexidade, tem o potencial de iluminar muito do que se passou na política brasileira recentemente. É a seguinte: por que caminhos (ou diabos) o “Não me representa” dos protestos de junho de 2013 rapidamente virou o “Mito! Mito!” que anima o comício permanente de Jair Bolsonaro —e deve ser, ao que parece, uma espécie de grito de guerra deste governo tribal?
Num texto recente, a jornalista e escritora Eliane Brum lançou a tese de que, segundo ela pela primeira vez na história do Brasil, o presidente é um “homem mediano”. O argumento avança em três movimentos.
Expõe, primeiramente, o que seria um contraste: ao contrário de todos os seus antecessores no cargo (o texto silencia, curiosamente, sobre a única antecessora, nem uma só vez mencionada), Bolsonaro careceria de excepcionalidade. “Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros”, escreve a jornalista.
Nas duas etapas seguintes, reafirma a explicação padrão de nossos intelectuais ditos progressistas para o fenômeno, este sim inédito, de um presidente de extrema direita. Começa pela assertiva de que “a posição do homem heterossexual no topo da hierarquia nunca foi tão questionada como nos últimos anos”; defende, a seguir, que os governos anteriores ao do interino Michel Temer teriam feito avançar, em grau sem precedentes, direitos de gênero, classe e, com especial destaque, raça. “O reconhecimento destes direitos e a ampliação do acesso dos negros a espaços até então reservados aos brancos teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetismo”, reflete Brum.
Já em relativa contradição com o movimento inicial, quando falava de “ampla camada de brasileiros”, o texto prossegue: “O novo presidente representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos sentiu que perdeu privilégios”. No estilo peculiar de sua prosa, Brum oferece uma imagem contundente desse brasileiro: “Macho. Branco. Sujeito Homem”.
Para a jornalista, foi apenas circunstancial que Bolsonaro tenha amealhado milhões de votos de mulheres e de uma parcela expressiva da população que poderia se autodeclarar preta ou parda, conforme os critérios cotistas (ainda) em vigor.
Brum tem razão ao afirmar que Bolsonaro “não é representante apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo”. Parece escapar à autora, porém, que não se adota uma “visão de mundo” dessa radicalidade apenas circunstancialmente —como ela sugere que teriam feito as eleitoras de Bolsonaro.
Isso, por si só, já bastaria para desautorizar a tese de uma revolta do homem branco, rico e heterossexual como motor da ascensão da extrema direita. E, no entanto, já sem o pudor de meias palavras como “mediano”, de conotação mais branda, Brum chega a uma explicação própria para o grito de guerra bolsonarista: “É assim que um homem medíocre como Bolsonaro vira ‘mito’. Ameaçados de perder a diferença que lhes garante privilégios que já não podem ter, Bolsonaro e seus seguidores [...] afirmam sua mediocridade como valor”.
Talvez fosse o caso de, antes, perguntar se o que Bolsonaro representa não é a síntese de algumas características sociais e comportamentais marcantes dos brasileiros —e brasileiras—, especialmente em sua relação sempre atribulada com a ideia de democracia representativa.
Em suma: por que nós —num amálgama complexo, como mostraram as pesquisas de intenção de voto em 2018, no qual se misturaram, em proporções variadas, eles e elas, pobres e semipobres, além dos ricos, e ainda pretos, pardos e brancos— decidimos por maioria eleitoral que a triste figura de Bolsonaro, aos brados de “Mito! Mito!”, deveria preencher o vazio do “Não me representa”?
Mas voltemos à falta de excepcionalidade de Bolsonaro. O que mais chama a atenção, e logo na primeira frase do texto de Brum, é que essa ideia venha fortemente acoplada a outra, a de novidade: “Desde 1º de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto”, afirma o artigo. “Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar”, analisa a jornalista, “quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos.”
Afora a ideia facilmente contestável de que a democracia seja esse governo dos melhores, e voltaremos a isso, também se poderia objetar, quanto à observação de Brum, que votar em alguém parecido com o tio ou o primo —note-se: num homem feito fulano ou sicrano e, por extensão, feito Bolsonaro— não haverá de ser a mesma coisa que votar em alguém parecido consigo mesmo para vastos contingentes do eleitorado, mulheres sobretudo.
O comentário seguinte da jornalista, porém, é que merece escrutínio mais detalhado. Na construção de sua persona pública de “homem mediano”, o próprio Bolsonaro muitas vezes insistiu no fato de que, como deputado do baixo clero, não tinha prestígio. “Eu não sou ninguém aqui”, afirmou o agora presidente em discurso no plenário da Câmara em 2011, destaca Brum, como ilustração ao próprio argumento.
Dá-se, assim, mais uma volta ao parafuso: o(a) eleitor(a) de Bolsonaro, à semelhança do eleito, reaparece agora em sua encarnação definitiva —a do proverbial zé-ninguém (quem sabe também a de uma maria-vai-com-as-outras?).
Seria uma imagem completamente desabonadora, não fosse sua surpreendente semelhança com a caracterização que, em livro-manifesto de 2017 (“Só Mais um Esforço”, publicado pelo selo Três Estrelas, do Grupo Folha), o filósofo Vladimir Safatle, colunista deste jornal e voz incontornável da esquerda, registrou como a do manifestante típico das chamadas Jornadas de Junho de 2013.
No relato de Safatle, um desses manifestantes, respondendo a repórter que pedia para anotar seu nome depois de uma rápida entrevista de rua, teria dito: “Anota aí: eu [não] sou ninguém”. “Por mais paradoxal que possa inicialmente parecer”, comenta então o autor, “‘Eu [não] sou ninguém’ é a mais forte de todas as armas políticas. [...] é, na verdade, a forma contraída de: ‘Eu sou o que você não nomeia e não consegue representar’”. É quase inevitável, aqui, a lembrança da alcunha pela qual Bolsonaro passou a ser referido em fóruns de esquerda (inclusive no texto de Brum): “o coiso”, aquele que não tem nome, cuja representação extrapola os limites de certo imaginário político.
Ironicamente presciente, o manifesto de Safatle conclui, ainda sobre os protestos de 2013: “Uma insurreição não é necessariamente a emergência de um novo sujeito político. A insurreição pode ser a explosão bruta da revolta, mas, para que essa revolta forje um su- jeito emergente, é necessário ainda mais um esforço”.
Todavia, como em outras partes do mundo, também aqui quem ainda guardava um último fôlego eram a extrema direita e seu candidato zé-ninguém —e talvez com essa o filósofo não contasse (embora deva-se conceder que, ao propor um programa de ação, Safatle pensava a longo prazo, não eleitoralmente).
Até o momento, as versões da esquerda para o desarranjo político recente ora partem de premissas ruins —políticas identitárias provocariam “grande impacto” no voto por ressentimento de uma suposta massa de privilegiados (Brum), soluções revolucionárias teriam suficiente apelo no Brasil de hoje (Safatle)—, ora incorrem em erros conceituais básicos, como este, novamente no texto de Brum: “[...] a ideia de que aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia”.
Se há novidade em Bolsonaro, não está no fato de ele ser mais um produto ruim da vontade popular.
A atual visibilidade da figura a que se poderia chamar ‘o ignorante empoderado’ oferece a chance de uma revisão de nossos próprios problemas com a democracia representativa
Talvez o problema de fundo seja precisamente a expectativa em torno das virtudes (e as há) da democracia representativa —a ponto de sua mais progressista versão, a social-democracia europeia, inexplicavelmente merecer o desprezo de certa esquerda delirante.
Num dos bons livros lançados recentemente sobre a atual crise do sistema representativo, “Como a Democracia Chega ao Fim” (ed. Todavia), o professor David Runciman, da Universidade de Cambridge, tratou de repensar, à luz de uma história de mais de dois séculos, os limites desse arranjo político.
(Meses antes da chegada do livro ao Brasil, em entrevista à Ilustríssima, Runciman comentava a eleição de Donald Trump, nos EUA, como típico exemplo da prevalência, na política atual, da mentira sobre a hipocrisia. E, intuindo talvez que as eleições brasileiras não escapariam à sina de um candidato populista à imagem de Trump, vaticinava: “Acho melhor ser governado por adultos hipócritas do que por crianças mentirosas, mas, infelizmente, não tem sido essa a visão preponderante nas democracias contemporâneas”. Deu Bolsonaro.)
No final do ano passado, Runciman voltou à carga em conferência intitulada “Democracy for young people” (democracia para jovens) e veiculada no podcast Talking Politics. Ali, reelabora seus argumentos —além de, como já fizera no livro, avançar propostas para “consertar” o sistema representativo em sua hora mais difícil.
A mais polêmica delas, que ganhou as páginas dos jornais ingleses, é a de baixar a idade mínima dos eleitores para seis anos. Sim, logo que entrassem na escola primária, e portanto passassem a participar oficialmente —como cidadãs letradas,