Folha de S.Paulo

Kubrickdet rás para afrente

‘No começo da minha carreira, o diretor foi o primeiro nome do cinema a arrebatar minha atenção’

- A obra que marcou Mel Lisboa Atriz, está em cartaz com a peça “Dogville” no Teatro Porto Seguro até 31/3 Depoimento a Walter Porto

Eu estava no início do curso de cinema na Universida­de Federal Fluminense, ao redor dos meus 18 anos, quando tive o primeiro contato com a obra de Stanley Kubrick.

Foi um marco na minha vida. Era a época em que eu estava começando a entender mais sobre cinema, e ele foi o primeiro diretor a me despertar. Na faculdade, falava-se muito de cineastas como Ingmar Bergman, Jean-Luc Godard, mas o primeiro que arrebatou minha atenção foi Kubrick, talvez por ser mais contemporâ­neo a mim.

O primeiro filme que vi dele foi “De Olhos Bem Fechados” (1999), que estava em cartaz no cinema, lançado depois da morte do diretor. Ou seja, comecei a conhecê-lo de trás para a frente. Eu era muito novinha, e o filme me marcou demais. Os sonhos da personagem da Nicole Kidman, aquelas festas, as orgias mascaradas me impactaram de tal maneira que saí da sala sentindo necessidad­e de ver todas as outras obras dele, imaginando que seriam parecidas —o que estava longe da realidade.

Seus filmes são muito distintos um do outro. São ligados, claro, por uma maestria impression­ante, mas a maioria dos diretores têm uma linha que seguem durante toda sua filmografi­a, passeando um pouco para cá ou para lá, mas mantendo-a de modo geral. Kubrick não.

Se “O Iluminado”, por exemplo, é um terror psicológic­o brilhante, e olha que eu não gosto do gênero, há ficção científica, filmes de guerra, e Peter Sellers faz uma comédia sensaciona­l em “Doutor Fantástico”.

Segui aquela sessão de “De Olhos Bem Fechados” com a busca pelos outros filmes mais conhecidos do diretor. E na época só dava para fazer isso em videolocad­oras, frequentem­ente em cópias de qualidade ruim.

Aquele que todo mundo mais co- mentava era “2001 - Uma Odisseia no Espaço”. Lembro-me de que, na faculdade, tinha um professor mui- to rígido, chamado João Luiz Vieira, que certa vez falou algo que ressoou em mim: “Vocês não podem ver ‘2001’ na televisão. Se for para fazer assim, melhor não ver”.

Como eu não tinha o que fazer, não dava para ver no cinema, aluguei uma fita e assisti na TV. Achei chatíssimo, me deu sono pra caramba.

Até que uns meses depois, por coincidênc­ia, programara­m uma reapresent­ação de “2001” em um cinema do Rio. E eu pensei: “Vou dar mais uma chance”. A experiênci­a foi completame­nte diferente. Não sei se por ser uma revisão ou pelo efeito da tela grande, mas desta segunda vez o impacto foi outro.

Após algum tempo, por acaso, eu estava em Berlim na época do festival cinematogr­áfico sediado lá. A sessão de encerramen­to seria —de novo— uma exibição de “2001”, mas dessa vez uma projeção em tela especial para exibir o filme em 70 mm, como pretendido por Kubrick.

Tentei arrumar ingresso para a sessão e, claro, não consegui. Chateada, comprei para outra sessão, de um filme do Fritz Lang. Até que me apontaram que havia uma fila de espera para o Kubrick, onde distribuía­m os ingressos dos convidados que não apareceram —e afinal não só assisti à projeção por um preço baratíssim­o como acompanhei, logo depois, a cerimônia de premiação do festival.

Foi só aí que entendi a real grandiosid­ade do projeto de Kubrick. Só aí pude compreende­r a ortodoxia do meu professor. Quer dizer, acho que o filme tem que ser visto de qualquer jeito, mas dá para entender alguém fazer a defesa que ele fazia.

Certa vez, decidi que queria não só ver, mas ter os filmes do cineasta. Era muito difícil encontrar as cópias para comprar no Brasil, então aproveitei uma viagem a Nova York e decidi que, antes de ir embora, faria uma visita a uma loja no outro lado da cidade que tinha a coleção inteira de Kubrick em DVD. E fui impedida de ir até lá porque, veja só, o dia era 11 de setembro de 2001.

Cineastas que marcam tão profundame­nte geram não só histórias e inspiraçõe­s para seu trabalho —estudando planos e atores maravilhos­os como Malcolm McDowell e Jack Nicholson—, mas referência­s que você leva para o dia a dia.

Não consigo olhar um corredor longo de hotel sem me lembrar de “O Iluminado”. Não consigo maquiar meu cílio sem lembrar as torturas de “Laranja Mecânica”. E até hoje, quando alguém me pede para sugerir uma senha, eu falo “fidelio”, como em “De Olhos Bem Fechados”.

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Adriano Vizoni/Folhapress A atriz Mel Lisboa em sua casa, em São Paulo

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