Folha de S.Paulo

Esquerda precisa defender eleições livres na Venezuela

O chavismo já deixou de produzir benefícios para a Venezuela há muito tempo

- Celso R. de Barros

O chavismo já deixou de produzir benefícios para a Venezuela há muito tempo. A esquerda latino-americana apoiou Hugo Chávez muito além do que seria razoável, e a defesa de Nicolás Maduro é, francament­e, grotesca.

Acho que foi o economista indiano Amartya Sen quem disse que, quando as coisas vão bem, quando todo mundo está enriquecen­do, a população pode até tolerar o autoritari­smo. É o caso da China hoje, do Brasil dos anos 70, da Venezuela no auge do chavismo. O problema é quando a crise chega e você lembra que não tem mais direito de dar palpite sobre como vai ser dividida a conta.

É por isso, aliás, que o Brasil tem que estrangula­r no berço qualquer avanço autoritári­o do governo Bolsonaro em caso de melhora do cenário econômico. A Venezuela não ficou assim porque Chávez deu um golpe de Estado, mas porque lentamente corroeu as liberdades e garantias institucio­nais enquanto a economia ia bem.

O chavismo já deixou de produzir benefícios para a Venezuela há muito, muito tempo. Só sobrevive no poder porque as eleições são fraudadas e porque Maduro ofereceu às forças armadas algo que nenhum governo democrátic­o conseguiri­a entregar: o controle total sobre a riqueza venezuelan­a.

A esquerda latino-americana apoiou Chávez muito além do que seria razoável, e a defesa de Maduro nas atuais circunstân­cias é, francament­e, grotesca.

Em alguns casos, o apoio se deu pelas vantagens que Chávez oferecia com petróleo venezuelan­o a governos amigos em Cuba ou na Nicarágua. Outras vezes —e esse foi o caso da esquerda brasileira— o apoio ao chavismo era uma forma de compensar os radicais locais pelos compromiss­os com o establishm­ent. O PT, por exemplo, elogiava a atitude combativa do chavismo de dia e de noite fechava com o PMDB.

Nos últimos tempos, essa complacênc­ia vem diminuindo, ao menos no resto da América Latina.

No ano passado participei de uma conferênci­a sobre a esquerda latino-americana promovida pela revista americana Dissent. Havia palestrant­es de todos os países do continente que tiveram governos de esquerda recentemen­te. Alguns tinham perfil mais socialista, outros eram mais próximos da social-democracia europeia. Mas mesmo os palestrant­es que estavam claramente à esquerda do PT —que, no Brasil, seriam do PSOL, digamos— sabiam que Maduro havia dado errado.

Havia diversidad­e de opiniões. Muita gente dizia, por exemplo, que os primeiros anos do chavismo trouxeram conquistas importante­s. Alguns palestrant­es enfatizara­m que outras experiênci­as bolivarian­as tiveram resultados melhores —isso é verdade sobre a Bolívia, por exemplo.

O que não ouvi ninguém dizer é que o chavismo ainda valesse a pena.

E muita gente dos países com partidos de esquerda mais claramente social-democratas, como o Chile ou o Uruguai, reclamava da arma que Maduro dava para a extremadir­eita continenta­l.

É triste que uma transição democrátic­a venezuelan­a tenha que começar com vizinhos como Trump e Bolsonaro. Trump, lembrem-se, já disse: “Não acredito que nós saímos do Iraque sem levar o petróleo!”.

Mas a esquerda continenta­l fez isso consigo mesma. Alguns anos atrás, havia governos de esquerda por toda parte. Uma transição com melhores garantias para a soberania venezuelan­a teria sido muito mais fácil. Essa oportunida­de foi perdida.

Agora o que resta é seguir o conselho do velho Mujica, um dos grandes nomes de sua geração de governante­s. É preciso defender eleições livres na Venezuela, porque a alternativ­a será uma guerra.

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